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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Quando as febres nos levaram reis e príncipes

O jovem rei D_ Pedro V visitando os enfermos em ho

 

 

Com tanta mortandade, Portugal mergulhou num estado que resvalava entre a depressão e a revolta. Ninguém queria acreditar que o rei “santo” tinha desaparecido com as febres. Alguém devia ser o culpado!

Foram anos terríveis. A doença grassava no País, matando arbitrariamente, mas nunca ninguém pensou que batesse à porta dos "intocáveis". Em dois anos, a rainha, o rei e dois jovens infantes morrem inesperadamente. O povo divide-se entre os que culpam os céus, aliás bastos em sinais de mau augúrio para a vida de D. Pedro V, e os que tentam encontrar bodes expiatórios, da cultura do arroz, aos políticos. Portugal cai num estado que resvala entre a depressão e a revolta.

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Olhando para trás, talvez aqueles tempos fossem iguais a quaisquer outros, embora, convenhamos, não é normal tanta mortandade na família real, em nenhuma era, porque está habitualmente resguardada das principais maleitas.

Em meados do século XIX tudo foi diferente.


Durante o reinado de D. Pedro V, iniciado quando este tinha apenas 16 anos e devido à morte da mãe no parto do 11º filho, aconteceu “tudo o que é trágico”: incêndios de grandes proporções; cheias destruidoras (1855), um terremoto (1858) e vários surtos epidémicos: cólera-mórbus, febre-amarela, difteria, tifo e febre-tifoide.

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Ao contrário do que era usual durante estas epidemias, a real família não seguiu o exemplo de outros clãs abastados.

Em vez de rumar às casas de campo e férias em busca de ares descontaminados, permaneceu no seu "posto" e até em contacto direto com os enfermos.

A aparente imunidade do rei, que amiúde visitava e cuidava de pessoas doentes, associada à sua beleza quase angelical, haviam criado em torno do monarca e aos olhos do povo uma aura que roçava a santidade.

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Curiosamente, embora as grandes cidades fossem mais afetadas pelas moléstias, devido à aglomeração de pessoas que, como bem sabemos, é propícia ao contágio, as mortes reais ficaram ligadas ao interior do País.


O primeiro choque não se faz esperar. Corre o ano de 1859 quando a rainha Dona Estefânia (na imagem) perece de difteria após uma viagem ao Alentejo (Vendas Novas). O rei, que com ela havia casado um ano antes, fica devastado.


Já em 1861, no espaço de dois meses, D. Augusto fica gravemente doente. O próprio D. Pedro e os outros irmãos, João e Fernando (nas imagens 5 e 6)), morrem de febre tifoide pouco depois de regressarem de um périplo na mesma região.

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Todos eram belos, saudáveis e extremamente jovens.*


O funeral do rei arrastou mais de cem mil pessoas, numa cerimónia de consternação nacional nunca vista.

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Mas, rapidamente se passou da dor à fúria.

Nas ruas falava-se de envenenamento e o principal visado nesta revolta irracional era o Marquês de Loulé, presidente do Conselho, suspeito aos olhos da população em luto de envenenar o rei para colocar o próprio filho – neto de D. João VI – no trono.

São efetuadas análises toxicológicas aos cadáveres, que nada revelam, mas o conde da Ponte também chega a ser atacado e as casas dos marqueses de Ficalho, Ávila, Tomar, Casal Ribeiro e Martens Ferrão são apedrejadas.

 


Os boticários e os médicos tornam-se também alvo da ira popular, uns porque aumentam os preços e restringem as vendas dos medicamentos; outros porque não são capazes de debelar a doença.

Em paralelo, pede-se a expulsão de vagabundos e estrangeiros, vistos como potenciais focos de infeção. cortejo funebre d pedro V.PNG

Sucedem-se igualmente as queixas sobre a venda de produtos alegadamente contaminados, encarados como causadores do mal que batia a todas as portas.

De facto, não faltavam bodes expiatórios nesta revolta cega, que serve de argumento para desacatos e crimes que nada tinham que ver com o sentimento de perda que o País experimentava.


Porque tinha jantado com o rei pouco antes da doença se revelar, o banqueiro espanhol D. José de Salamanca y Mayol, ao qual Portugal devia as avultadas somas, não escapou às suspeições.

O mesmo para a cultura do arroz, que então dava os primeiros passos em larga escala e era vista como “mortífera” e “pestilenta”, associada que estava ao apard pedro V revista brasil_portugal.JPGecimento de febres paludosas que o povo entendia serem em tudo semelhantes às que haviam morto tanta gente.

 

Foi com este “cortejo fatal de desventuras”, refletido num clima perturbador de enfermidade, tumulto e insegurança que terminou abruptamente o reinado do “bem-amado” D. Pedro V.

A sua morte foi um golpe fatal para a esperança que, aos olhos do povo, o rei pacífico, progressista, culto e competente personificava.


Alguém assim tão perfeito, não poderia perdurar....

 

À margem

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Diz o povo: se queres ser bom, morre ou vai-te! Pode ter sido este fenómeno a criar em redor da figura de D. Pedro V uma aura de perfeição, ou isso pode, efetivamente, dever-se às suas qualidades. O seu reinado não teve só desgraças, aliás foi pródigo em evoluções tecnológicas e sociais. Para começar, o ainda príncipe, fez questão de viajar pela Europa, conhecendo nações com outras realidades e graus de desenvolvimento. Numa triste ironia, no regresso, porque havia passado por países onde grassavam pestes, isolou-se em quarentena para não trazer tais doenças para Portugal.

Foi durante o seu reinado que se inaugurou o telégrafo elétrico e o caminho-de-ferro, de que o rei foi grande entusiasta. Criou escolas e fundou, em Lisboa e a expensas próprias, o Curso Superior de Letras.
Era um homem grave, sério, culto, bem preparado para as funções que assumiu e moderno.

A título de exemplo, tinha o hábito – pouco comum na época, de distribuir livros como presente às crianças.

Paralelamente, contra a opinião de conselheiros e para espanto de muitos, instituiu uma caixa de reclamações e sugestões, da qual apenas ele tinha a chave. Instalada em área pública, a famosa “caixa verde”, servia para que qualquer pessoa pudesse contactar diretamente com o rei, expressando as suas opiniões e inquietações.
Mas isso é outra história….


…………………….
* D. Estefânia - 17 julho 1859 – 22 anos
Infante D. Fernando – 6 novembro 1861 – 15 anos
D. Pedro - 11 novembro 1861 – 24 anos
Infante D. João - 27 dezembro 1861 – 19 anos

O infante D. Augusto sobreviveu
……………….
Fontes

As epidemias nas notícias em Portugal: : cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918, de Maria Antónia Pires de Almeida; Centro de Investigação e Estudos de Sociologia/ ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.2, abr.-jun. 2014, p.687-708. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014000200012

0 imaginário social das epidemias em Portugal no século XIX; de Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da Silva; Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Lusíada de Lisboa; Lusíada História - Lisboa. II Série, n. 0 1 2004
Crises de mortalidade em Portugal desde meados do século XVI até ao início do século XX, de Maria Hermínia Vieira Barbosa, com a colaboração de Anabela de Deus Godinho; Coleção Monografias 10; edição do Núcleo de Estudos de População e Sociedade Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho; Guimarães - 2001
O segredo de D. Pedro V
https://archive.org/details/osegrdodedompe00cost/page/6/mode/2up?q=alc%C3%A1cer


Biblioteca Nacional de Portugal em linha
www.purl.pt
O jornal do Porto
Nº270; 3º ano – 26 nov. 1861
Nº271; 3º ano – 27 nov. 1861

Hemeroteca Municipal Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt
Olisipo – Boletim Trimestral - Grupo Amigos de Lisboa
Ano XXV; nº97 – jan. 1962

Documentos para a história da toxicologia em Portugal - O caso do infante D. João (1862) - Relatório dos peritos encarregados da análise toxicológica - Chimica technica - Rev. de Chimica Pura e Ap. — 2º anno — nº 8 — Ago. 1862


https://apambiente.pt/_zdata/Divulgacao/Publicacoes/Tagides/TAGIDES_01.pdf


http://maltez.info/respublica/portugalpolitico/revoltas/1861%20revoltas.htm

Imagens

Biblioteca Nacional de Portugal em linha
www.purl.pt
Cotas
E-3992-P
E. 117 V.
E. 82 V.
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001911
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001665

https://historiaschistoria.blogspot.com/2017/07/d-pedro-v-de-portugal.html

http://www.artnet.com/artists/thomas-jones-barker/king-pedro-v-of-portugal-and-brazil-visiting-the-nJksHetQaqeO4RKAIgfO2Q2

 

4 comentários

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    CV 01.09.2020

    Olá Mitologia, fazem perguntas difíceis…que eu agradeço, porque me obrigam a pensar em pormenores a que não tinha dado muita importância e, com isso, aprende-se.
    A primeira é mais fácil. Efetivamente, o hospital D. Estefânia foi batizado em homenagem a esta rainha, que, como refiro no post e tal como o rei, tinham especial dedicação aos doentes. Neste caso, a rainha manifestou vontade de criar um hospital pediátrico, mas nem ela, nem D. Pedro V - que iniciou a obra - viveram o suficiente para a ver terminada (1877).
    Quanto às sugestões, não sei se há registo, mas D. Pedro V deixou memórias escritas e é natural que nestas estejam expressas sugestões recebidas, se é que as houve - não nos podemos esquecer que na época muito pouca gente sabia ler. Já li algumas obras sobre este rei - nomeadamente o livro da Maria Filomena Mónica, mas não me recordo de qualquer referência específica, até porque estava à procura de outras questões.
    Quanto aos cognomes, penso que não há uma resposta simples para essa pergunta, porque presumo que os cognomes não tenham todos a mesma origem. Já se percebeu que normalmente são laudatórios (em alguns casos o mesmo rei tem cognome elogioso e cognome crítico, como no caso do D. Pedro I, que tanto é referido como O Justiceiro ou O Cruel) e chamam à atenção de uma característica dominante no reinado ou, à falta desta, uma característica física do rei - D. Fernando, que fez tantas asneiras é simplesmente O Belo ou O Formoso. Quem os atribuiu penso terem sido os cronistas e outros fazedores de opinião das diferentes épocas, por vezes fazendo eco da vox populi...Não tenho uma resposta definitiva, estou só a falar alto...a escrever alto, quer dizer.
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    mitologia.pt 03.09.2020

    Obrigado pelas respostas, mas o problema dos cognomes é muito grande. Por exemplo, em Espanha existe um rei que é chamado "O Impotente" (por razões sexuais), e é natural que isso não tenha nascido na altura dele. Mesmo em Portugal, "O Gordo" dificilmente lauda Afonso II. Alguém terá escolhido, ou repassado até aos nossos dias, esses cognomes, mas quem será que o fez? :P
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    CV 06.09.2020

    Tem toda a razão...mas e porque é que em Portugal não colocaram o mesmo cognome ao D. Afonso VI se, popularmente, foi por isso e, contraditoriamente, pela vida de devassidão que alegadamente levou que ficou conhecido? Em vez disso ficou "O vitorioso". Compreendo a questão e partilho da curiosidade, mas reitero que, a meu ver, a resposta não é linear, não foi só uma pessoa ou um tipo de pessoa que passou a palavra. Agora, porque é que ficou um titulo e não outro….também é discutível e não sei responder. Já agora, coitado do D. Afonso II, para além de gordo, também era O Gafo...será que ninguém se lembrou de um cognome mais simpático para o homem que ficou ligado à importante conquista da bela terra que escolhi para viver?
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