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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Quando, na Beira, mandavam as quadrilhas de salteadores e assassinos

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Houve um tempo em que a violência e a criminalidade andavam à solta, criando um verdadeiro estado de terror. Essa foi uma realidade especialmente brutal e prolongada nas Beiras, onde grupos de malfeitores arrasavam aldeias, agrediam e matavam pessoas, algumas vezes para roubar, outras para aniquilar opositores, a mando de algum grupo político que os patrocinava e protegia. A maioria destes homens nunca seriam julgados ou condenados.

 

O País ainda não estava refeito das perseguições e atropelos durante o reinado de D. Miguel ou de todas as atrocidades praticadas de parte a parte durante a guerra civil. Mal se calaram essas armas, desembainharam-se outras, igualmente ávidas, que custaram a calar-se e ensombraram as primeiras décadas do liberalismo. Esta onda de terror foi particularmente grave nos concelhos beirões, nas décadas de 30 a 60 do século XIX.

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Qualquer família liberal que se sentisse suficientemente segura, podia pegar em armas e exigir aos absolutistas perdedores indeminização por danos sofridos durantes os conflitos anteriores, dando origem a autênticos bandos de justiceiros em causa própria.

O mais conhecido destes vingadores do trabuco e do punhal foi o famigerado João Brandão (na imagem), mas muitos outros deixaram o seu nome inscrito a sangue e medo na memória das gentes.

Ao contrário do Remexido, que punha a ferro e fogo a serra algarvia, João Brandão teve a sorte de estar do lado dos vencedores e ser até reconhecido como apoiante da consolidação desse poder, o que lhe deu um capital de influência e poder, que foi meio caminho andado para as muitas arbitrariedades que cometeu.

Extorsão, chantagem, roubo, tortura, rapto e assassinato. Todos estes crimes são imputados a João Brandão e à sua quadrilha de clavineiros, que os terão perpetrado por vingança e cobiça, mas também numa atividade de condicionamento da justiça e, a mando dos caciques locais, para anular ou acossar os opositores políticos, prestando assim uma espécie de “serviço público” ao poder instituído.

Estes “amigos” bem colocados incutiam-lhe uma arrogância proporcional à impunidade de que gozou durante muitos anos.

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O jornal O Conimbricense (na imagem, a cidade de Coimbra em finais do século XIX), que empreendeu uma verdadeira campanha contra os Brandões, atribui-lhe a participação em pelo menos 15 homicídios.

Acabaria por ser condenado ao degredo pela morte do padre José da Anunciação Portugal. Mas, também aí teve um tratamento de exceção. Tendo pedido transferência de Luanda para Mossâmedes, ali criou uma próspera fábrica de aguardente. Morreu no Bié, em 1880.

Conhecido como o “terror da Beira”, tem, também, quem o defenda e o homenageie como herói, dando o seu nome a ruas ou equipamentos (na imagem, a casa onde morou).

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Os Brandões de Midões – João, o pai, irmãos e outros familiares – foram os mais famosos, no entanto, não foram os únicos que trouxeram a região em polvorosa de forma tão intensa que, mais de um século depois, ainda se contam essas histórias, para assustar as crianças rebeldes ou recordar que a paz não é um bem adquirido.

Nesse mesmo período foram muitos os que se destacaram pela negativa.

António da Costa Macário, o Caca, miguelista e, portanto, inimigo de Brandão, foi igualmente conhecido e temido. Natural da mesma freguesia, tinha sido alfaiate, mas trocou a tesoura e a agulha, por uma espingarda de canos curtos, duas pistolas e um punhal com cabo em marfim, pendentes de um vistoso cinturão espanhol delicadamente bordado. No currículo do seu grupo, que chegou aos vinte elementos, ficaram diversos roubos e homicídios, alguns por encomenda e com especial violência e requintes de crueldade sobre padres liberais.

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Mas, há mais. Temos, por exemplo, o Marçal de Foz Coa (António Joaquim Marçal), que foi condecorado com o Hábito de Cristo e a Ordem de Torre e Espada, apesar de ter saqueado várias localidades, incendiado casas e morto dezenas de pessoas.

Ou o “Boa Tarde” (António Rodrigues) que, aos 26 anos, já tinha seis homicídios no currículo. Matava a pedido, como fez por solicitação do padre Francisco Xavier Pereira de Figueiredo que, depois de ter envenenado um irmão, mandou eliminar o outro, por 11 moedas e meia e uma clavina.

Temos, ainda, entre tantos outros, José Ramos “Anginho”, que desferiu um tiro ao ferreiro da Várzea da Candosa (ver À margem), que o varou da garganta à nuca; o  “Boi de Coja” (José Joaquim Marques de Oliveira); o José Tavares de Brito; o António Pereira Grazina, “Venta Larga”; João Antunes Leitão, assassino de Vila Cova de Sub-Avô (atual Vila Cova de Alva); Francisco Marques, o “Coimbra”; a quadrilha de ladrões de Verride, com mais de 24 elementos e,  segundo os jornais, protegida por António de Macedo Pereira Coutinho, par do reino.

E os sicários de Lavos, a soldo de Joaquim Gonçalves Curado, o “Gaiato da Marinha”, administrador do concelho de Lavos, ou António Soares de Albergaria, administrador do concelho do Carregal, todos dando o exemplo de como o poder político pode ser um elemento perturbador da ordem pública, quando deveria ser o garante da mesma.

Em 1849, António Joaquim Ferreira Pontes, que havia sido voluntário da rainha, administrador do concelho de Moncorvo e ascenderia ao lugar de governador civil e deputado às cortes, corajosamente denunciava nos jornais um total e 33 assassínios, 43 espancamentos e 99 chefes de família obrigados a fugir de suas casas, só no concelho de Foz Côa.

O próprio João Brandão, em livro escrito na prisão, deixa uma lista de mais de 200 crimes não cometidos por si e cujos autores, afirmava, tentou punir.

Independentemente da autoria, a maior parte de todas estas atrocidades ficou impune.

 

À margem

Um dos mais conhecidos crimes atribuídos a João Brandão foi o assassinato de João Nunes, o ferreiro da Várzea da Candosa. Como era procurado pelas autoridades, por falsificação de listas eleitorais, e João Brandão foi incumbido de o apanhar, tinha ali o pretexto ideal para acabar com aquele seu inimigo. Entre homens seus, das forças policiais e militares, eram cerca de 200, que se dividiram pelas serranias e aldeias em busca do ferreiro. Uma verdadeira montaria, que deixou um rasto de violência e destruição pelos povoados onde não obtinham informações úteis à caçada.

Finalmente, a 9 de novembro de 1854, João Nunes foi surpreendido no lugar de Moura da Serra. Emboscado, deu-se um tiroteio que o atingiu num braço. Mesmo assim, conseguiu fugir, já de noite, para a Benfeita, acoitando-se em casa de um conhecido, onde o irmão o encontrou e chamaram dois barbeiros, com o intuito de o tratarem. São estes que o atraiçoam e levam a gente de João Brandão até ao esconderijo, onde o ferreiro é abatido a tiro, na cama, sem ter conseguido esboçar qualquer oposição.

O problema é que o administrador do concelho de Arganil, ao qual pertencem aquelas terras, não compactuava com os métodos dos Brandões, obrigando a encenar a morte noutras paragens.

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O cadáver é atado a uma égua vendada, com Miguel Nunes Jorge coagido a amparar o corpo do próprio irmão enquanto o anjinho apregoava “Quem quer marrã fresca?”, ao que os outros respondiam: “Vai vendê-la à Feira de Oliveira”. O estranho grupo dá entrada em Cruz de Anceriz, (Avô), onde se simulou novo tiroteio, crivando o morto com dezenas de balas.

Coincidência ou talvez não, anos depois deste crime sem castigo, a muitos quilómetros dali, em pleno Alentejo, estas famílias voltam a encontrar-se. Abel (na imagem), o filho mais velho do administrador do concelho da Tábua – Francisco Augusto da Costa Amaral - com cuja proteção João Brandão contou, viria estabelecer-se como advogado em Alcácer do Sal.

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Foi neste concelho alentejano que também se fixou Manuel Nunes Jorge (na imagem), um filho de Miguel, o irmão sobrevivente do ferreiro da Várzea da Candosa. Ambos aqui casariam e dariam origem a famílias prósperas e relevantes na terra.

Os “Amarais” foram uma linhagem onde se contam deputados, engenheiros, arquitetos conhecidos e até um ministro. Os Nunes Jorge (na imagem) estiveram ligados à fundação da firma Jorge e Irmão, detentores de oficina e estabelecimento comercial de dimensões consideráveis, que produzia e reparava máquinas agrícolas e outros equipamentos.

Os descendentes garantem que, ainda há duas gerações, o mais velho do clã, Manuel, andava sempre com uma machadinha ao ombro, pronto a defender-se.

Reminiscências, quem sabe, dos recuados períodos de violência conhecidos por esta família (na última imagem), na qual o apelido “ferreiro” permaneceu como elemento identitário até há bem pouco tempo.

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Mas isso são outras histórias….

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Já aqui antes falei desta época conturbada da história de Portugal:

Quando mais de mil criminosos se apoderaram de Lisboa - O sal da história (sapo.pt)

A surpresa de Alcácer - O sal da história (sapo.pt)

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Os meus agradecimentos a Maria do Carmo Jorge, bisneta de Miguel Nunes Jorge - que por pouco não foi assassinado, como o irmão - descendente da família do ferreiro da Várzea de Candosa, que me emprestou a maior parte de bibliografia aqui consultada, fotografias do avô e restante família.

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Fontes

Joaquim Martins de Carvalho, Os assassinos da Beira – Novos apontamentos para a história Contemporânea, Coimbra, 1890.

José M. Castro Pinto, João Brandão – o terror da Beira, Lisboa, Plátano Editora, 2004.

Luís Avelar e Pedro Massano, Mataram-no duas vezes – A lei do trabuco e do Punhal, Europress, 1987.

João Brandão - Infopédia (infopedia.pt)

Quem foi o João Brandão? – RTP Arquivos

Abel Augusto da Costa Amaral, * 1850 | Geneall.net

 

Informação prestada por Maria do Carmo Jorge

 

 

Imagens

A primeira imagem foi gerada por inteligência artificial, aqui:

AI Image Generator (deepai.org)

 

[João Brandão da Beira assassino do padre Portugal] (purl.pt)

File:Coimbra, séc. XIX.png - Wikimedia Commons

Biblioteca Municipal de Ilhavo - Os assassinos da Beira : novos apontamentos para a história contemporanea / Joaquim Martins de Carvalho (cm-ilhavo.pt)

Abel Augusto da Costa Amaral, * 1850 | Geneall.net

Fotografia de Manuel Nunes Jorge, filho de Miguel Nunes Jorge, sobrinho de João Nunes, o ferreiro da Várzea, fornecida pela neta, Maria do Carmo Jorge.

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