Quando o comboio uniu as margens do Sado
A ponte ferroviária foi entregue ao Estado português como indemnização alemã às potencias aliadas, de que o nosso País fez parte. A festa de inauguração acabou com um banquete com mais de uma centena de talheres e animadíssima tourada.
Muito povo, bandas de música, foguetes e aplausos, calorosos aplausos. Gare ornamentada com flores, plantas e bandeiras. Foi assim que Alcácer do Sal recebeu a extensa comitiva que saiu de Lisboa, pouco passava das 10 da manhã, para fazer a viagem inaugural da ponte ferroviária sobre o Sado. Até parecia que, por aqui, nunca se tinha visto passar um comboio.
Finalmente, a Linha do Sado estava completa, facilitando a ligação entre as margens. Não admira pois que, às 13h35 dessa segunda-feira, dia 1 de junho de 1925, centenas de pessoas, com e sem bilhete, se acotovelassem para disputar os lugares vagos nas 11 carruagens azuis. Um azul profundo sobre o qual grandes números pintados davam indicação de 1ª, 2ª ou 3ª classes. O trajeto, de ida à gare sul (junto ao atual bairro da Quintinha) e regresso à estação “mãe”, foi aclamado também pelos ocupantes das embarcações que, àquela hora, assistiram, no rio, à passagem da reluzente composição.
Depois, o percurso até ao edifício dos Paços do Concelho, a pé ou nos muitos automóveis colocados à disposição dos visitantes, foi ladeado de janelas engalanadas com as mais ricas colchas que os baús da terra continham. O cortejo, fechado pelo veículo onde seguia o ministro do Comércio, teve guarda de honra a cargo da corporação de bombeiros e de três bandas de música.
No salão do mais nobre edifício da terra tiveram lugar os discursos da praxe. Como é habitual, rasgaram-se elogios ao grande benefício da obra que então se inaugurava e os responsáveis locais pediram mais melhoramentos de que a terra desesperadamente carecia.
Afinal, por estas bandas, todos estavam cansados de esperar. A situação do caminho-de-ferro é bem expressiva quanto à lentidão com que o progresso aqui chegava.
A denominada Linha do Sado, ligando Barreiro e Setúbal ao Alentejo litoral, começou a ser pensada em meados do século XIX. Em vez disso, fez-se a linha do Alentejo, que retirou a Alcácer a importância estratégica de ser porto privilegiado para escoamento dos cereais da região. A ferrovia chegaria de Garvão a Alcácer-Sul só em 1918, mais de meio século de negociações depois. Por norte, o comboio alcançou a margem direita do Sado em 1920, altura em que, com euforia, foi inaugurada a estação de serventia à vila.
Só cinco anos depois, pessoas e mercadorias deixaram de ser obrigadas a fazer a passagem de barco ou pela acanhada ponte rodoviária em madeira, porque, à conta das indeminizações pagas pela Alemanha às potências aliadas contra as quais perdeu a I Grande Guerra, uniu-se Norte e Sul com uma bela ponte.
Por um dia esqueceram-se essas mágoas e, sobretudo, agradeceu-se e festejou-se tão importante travessia e a presença dos mais importantes dignitários. Encerrou-se a sessão com um banquete de cerca de 100 talheres, a que se seguiu, como era habitual em Alcácer em dias de festa, uma animadíssima tourada.
Pela tardinha, o comboio inaugural retornou – deixando pelo caminho os que tinham embarcado em Setúbal, Pinhal Novo e Barreiro, chegando a Lisboa já o dia escurecia, pois que também ali foi preciso atravessar as águas, desta vez do Tejo, a bordo do vapor Estremadura.
À margem
A chegada do caminho-de-ferro foi um elemento-chave para o desenvolvimento do concelho de Alcácer do Sal.
Depois de séculos de estagnação demográfica, entre 1920 e 1940 este território ganhou 8.700 habitantes. Este êxito não durou nem um século. Em 2010 foi inaugurada mais uma travessia ferroviária sobre o Sado, tendo em vista aumentar a velocidade das viagens entre Lisboa e o Algarve e facilitar o acesso ao porto de Sines. Anunciou-se que a variante a Alcácer do Sal (na zona do Pinheiro) seria usada sobretudo para o transporte de mercadorias, mas, apenas um ano depois, foi o pretexto para que os comboios Intercidades e Regionais deixassem de parar nesta cidade alentejana. Cerca de nove décadas depois da sua chegada, os comboios de passageiros abandonaram Alcácer do Sal. De nada valeram os abaixo-assinados, as manifestações e outros protestos públicos.
Mas isso é outra história...
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Nota: a 4ª imagem está arquivada na Torre do Tombo como fazendo parte da reportagem sobre a inauguração do caminho-de-ferro em Alcácer do Sal, no entanto, não me foi possível apurar quem são os homens que surgem na fotografia ou onde se encontram, visto que nenhum edifício de Alcácer do Sal – atual ou recentemente desaparecido – parece encaixar no que é visível. Inclino-me a pensar que esta fotografia tenha sido captada no percurso, talvez na estação ferroviária antiga do Barreiro, que possui este tipo de vãos. Quem sabe se, com a divulgação, se conseguirá compreender o que ali vemos. Alguém quer ajudar?
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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/EXTERNO/02/11/014
Jornal Neptuno, nº9 – out-dez-2006, transcrição de noticia do Diário de Notícias 02 jun 1925
pt/ahmalcs/cmalcs/fotografias/02/01/0049
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/246
Arquivo Nacional Torre do Tombo
PT/TT/EPJS/SF/006/09907 - Muito agradeço a Rui do Ó Oliveira que me encontrou esta imagem fantástica.
PT/TT/EPJS/SF/006/09930
https://www.tpf.pt/pt/variante-ferroviaria-de-alcacer-do-sal-c-411-5-190---6.html
http://censos.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=censos_historia_pt_1930