Quando “o muito amado” nos visitou
Pedro V esteve em Alcácer e no Torrão um ano após a morte da mulher, D. Estefânia. Foi recebido com entusiasmo, prestou homenagem aos mortos de Algalé e pernoitou no palácio de António Caetano de Figueiredo. Tragicamente, no mesmo mês, no ano seguinte, também ele e dois irmãos deixariam o mundo dos vivos.
Num novembro como este que passou, 162 anos antes, Alcácer do Sal e o Torrão engalanaram-se para receber o belo e jovem rei D. Pedro V e o príncipe real D. João, que por aqui distribuíram cumprimentos e sentiram o amor do povo. Um ano depois, no seguimento de mais um passeio ao Alentejo, ambos estariam mortos.
A visita de 1860 tinha começado a bordo do vapor Camões, no qual atravessaram o Tejo. O percurso entre Barreiro e Pinhal Novo foi já de comboio e, daí, seguiram para Vendas Novas, onde assistiram a manobras militares, tendo então chegado, para os cumprimentar, o infante D. Luís, irmão de ambos, recentemente regressado de África.
Partiram, a cavalo e em diligência, para Montemor-o-Novo; Borba e Elvas, tendo pernoitado em Vila Viçosa, no palácio da família, que não era visitado por qualquer dos Bragança havia 17 anos. Passaram depois por Extremoz, Vimieiro, Évora, Cuba, Beja e Serpa.
É no primeiro dia daquele mês, 15 minutos antes das 10 da manhã, que entram no Torrão, hoje município de Alcácer do Sal, mas então pertencente a Alvito, em cuja sede o rei havia passado a noite anterior.
Orgulhosos, os torranenses fizeram questão de receber o monarca com o velho estandarte ostentando o brasão de armas de quando eram sede de concelho, talvez tentando passar a mensagem de que não se conformavam com essa sua nova condição de terra subalterna e que queriam a câmara do Torrão de volta.
Ali, assistem a uma cerimónia religiosa na Igreja Matriz e seguem para casa do visconde do Torrão – atual lar da Santa Casa da Misericórdia local (na imagem) – onde é servido um almoço, ao qual compareceram várias “autoridades e pessoas de distinção”. Entre elas estavam dois dos irmãos do dono da casa, Jerónimo Mexia Salema, que, na ausência daquele, assumiram o papel de anfitriões.
Algumas das individualidades acompanham D. Pedro até parte do percurso em direção a Alcácer, onde fazem uma paragem especialmente simbólica, contada depois com emoção, em sessão parlamentar, pelo deputado alcacerense João Aragão Mascarenhas, que presenciou o momento.
Junto ao obelisco de Algalé, o Marquês de Ficalho – António José de Melo Breyner Teles da Silva - que vinha na comitiva, com a autoridade de quem lutou ao lado de D. Pedro IV pela defesa da carta constitucional e dos princípios liberais, terá pedido ao jovem rei para tirar o chapéu, em sinal de consideração, explicando estarem todos “pisando a terra regada com o sangue dos mártires de 2 de novembro”.
O Marquês aludia à trágica guerra civil que opôs liberais e absolutistas, partidários, respetivamente, dos irmãos D. Pedro IV e D. Miguel. Lembrava, naquele local, os malogrados 26 oficiais aprisionados e que, após a batalha de Alcácer, ocorrida naquele dia, no ano de 1833, ali mesmo haviam sido fuzilados.
El-rei terá então feito o que lhe pediam, inclinando-se respeitosamente perante o monumento.
Eram já seis da tarde, quando deram entrada em Alcácer do Sal, onde as reais pessoas foram acolhidas com arcos de triunfo nas ruas, grandes demonstrações de simpatia e o maior entusiasmo por parte dos habitantes.
O soberano foi recebido pelo então presidente da câmara municipal, António Caetano de Figueiredo – que anos depois receberia o título de Visconde de Alcácer do Sal.
Para o jantar, oferecido por sua majestade, foram convidados também o governador civil de Lisboa – a cujo distrito Alcácer pertencia, – o deputado João Aragão Mascarenhas, o juiz de direito substituto da comarca, o vigário da vara, o administrador do concelho, os senhores Mexia Salema, o diretor distrital das obras públicas e o cidadão Francisco Paula Leite, abastado proprietário alcacerense.
Após o repasto, houve ainda receção nos Paços do Concelho.
Finda esta, coube a António Caetano de Figueiredo a honra de hospedar o rei na sua opulenta casa (na imagem), onde depois se terá afixado uma placa a lembrar tão ilustre visita. Ficou assim denominado como Quarto D. Pedro V o espaço onde dormiu aquele que, para muitos, foi “a pérola dos reis e o modelo dos monarcas”.
A noite deve ter sido reparadora, porque não eram ainda 7 da manhã do dia 2 de novembro, já sua majestade e sua alteza se despediam dos alcacerenses, embarcando na galeota que os levaria a Setúbal. No dia seguinte chegariam a Lisboa.
À Margem
Um ano e três meses depois desta viagem, quis o triste acaso que dois dos intervenientes voltassem a estar na mesma sala, mas em situação totalmente diferente e absolutamente impossível de prever, pela total estranheza da mesma. Um dos irmãos Salema, irmão do visconde do Torrão, que recebeu D. Pedro e o infante D. João no palácio da família, seria o magistrado responsável pelos procedimentos legais no exame toxicológico aos restos mortais do malogrado infante.
De facto, as mortes sucessivas na família real - a rainha D. Estefânia (1859), de difteria; D. Pedro e os irmãos, João e Fernando, de febre tifoide, em 1861 – criaram um clima de grande desconfiança por parte do povo, que pretendia respostas.
Decidiu-se então levar a cabo um exame toxicológico aos principais órgãos internos do infante, extraídos durante a autópsia. Como, efetivamente, não se suspeitava de qualquer substância em particular ou sequer de envenenamento, pois nada o indicava, os peritos viram-se obrigados a testar os tecidos para todos os tóxicos metálicos, o arsénico e bases orgânicas toxicas, em 17 fastidiosas e complexas sessões, no Laboratório Químico da Escola Politécnica. A 8 de fevereiro de 1862 chegava o veredicto antecipado: não foi encontrado qualquer vestígio de envenenamento.
Curioso é D. Pedro ter morrido após outra visita ao Alentejo – a Vila Viçosa – e ter passado incólume à passagem por aquela que era conhecida como a terra mais doentia de Portugal: Alcácer do Sal.
Mas isso é outra história…
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Nota: agradeço a Maria Antónia Lázaro a informação que me possibilitou completar este texto que havia muito se encontrava em espera.
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Fontes
Diário de Lisboa
Nº259 12.11.1860
Nº260 13.11.1860
Nº113 20.05.1862
http://memoria.bn.br/DocReader/
Diário do Rio de Janeiro
Nº251 18.11.1860
Nº254 05.12.1860
Jornal Pedro Nunes, 10.09.1905
Crónica dos anos de 1860-1861
bloco06-49_58 morte d pedro V e d joao.pdf
Andreia Luísa da Costa Alves, O complexo arqueológico de São Fausto do Torrão: memória e identidades, Vol. I, dissertação para obtenção de título de mestre em Arqueologia e Ambiente, Área de Especialização: Estudo de Impacte Ambiental, Universidade de Évora, 2018.
Revista de Chimica Pura e Applicada, II ano, nº8, 1906. pp.294 – 305.
Imagens
Biblioteca Nacional de Portugal
www.purl.pt
SMF El Rei de Portugal D. Pedro V, cota E. 202 A, A. J. de Santa Bárbara, lith. [Lisboa : s.n.], 1860.
Vista da Igreja de São Vicente de Fora quando alli chegou o corpo do Senhor Dom Pedro, cota e-3992-p, SERRANO lith, ([Lisboa] :Lith. de Lopes), depois de 1861.
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
Obelisco de Algalé
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/1267
Solar visconde do torrão
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/1149
Paisagem de Alcácer (poente)
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/176
http://www.royaltyguide.nl/images-families/braganza/braganza3/1837%20Pedro-06.JPG, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2030429