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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Quando o príncipe português casou

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O último enlace de um príncipe português em solo nacional deu que falar na comunicação social da época, até porque os jornalistas foram pela primeira vez convidados a participar. Os festejos oficiais prolongaram-se por nove dias durante os quais não faltaram glamour, luxo e contratempos.

 

Capturarcasamento 2.JPGHá 152 anos, Portugal assistia ao último casamento real antes da queda da monarquia. O decreto que definiu todo o protocolo das cerimónias do enlace entre D. Carlos e D. Amélia falava em quatro dias de grande gala, mas os festejos oficiais prolongaram-se por mais cinco em que, apesar dos avultados gastos, da grande pompa e circunstância, também não faltaram contratempos e insólitos que hoje em dia teriam feito o deleite das revistas e sites “cor-de-rosa”.

 

Capturarcasamento 3.JPGA festa tinha começado dias antes, com a receção à princesa e à sua família, mas o casamento propriamente dito ocorreu no dia 22 de maio de 1886, na Igreja Paroquial de Santa Justa e Rufina*, depois de um imponente desfile dos “ricos coches históricos”, em que os mais importantes do reino se fizeram transportar. A decoração do templo, que “importou em grandes somas” e estava “riquíssima”, não seria muito artística, embora tivesse ficado a cargo de um “arquiteto ilustre”. Parece que, à última hora, teve que ser modificada e o resultado acabaria por ser “um todo desarmónico, um amalgama defeituoso e incoerente, sem unidade, sem ideia, sem estilo”, criticava a conceituada revista O Occidente, que também não poupou a ornamentação das ruas.

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A moldura humana, essa sim, superava todas as expetativas, numa “incalculável” “imensidade de gente” pelas ruas entre a igreja e o paço de Belém, por onde passaria o desfile, que mal conseguia abrir caminho por entre os muitos milhares de mirones.

Numa época em que a luz artificial era ainda incipiente, esperava-se com excitação as elaboradas iluminações anunciadas para essa noite. Toda a cidade de Lisboa se acendeu, à exceção da avenida (da Liberdade) – que tinha sido concluída poucos anos antes ao estilo dos Champs-Élysées, em Paris – e sobre a qual recaía maior curiosidade, só satisfeita dias depois, quando finalmente brilharam os 48 arcos luminosos a gás aí instalados.Capturarcasamento 8.JPG

 

Destacaram-se o edifício dos Paços do concelho, muitas casas particulares decoradas com vistosos balões venezianos e o terreiro do Paço, este pela negativa, com 12 mil lumes, que eram “de muito mau gosto e produziam pouco efeito”. Belém resplandecia, parecendo “um conto de fadas”, efeito reforçado pela luz das muitas embarcações que, no Tejo, se juntaram ao júbilo geral e pelos “foguetes de lágrimas” que, de forma mágica, se multiplicavam no reflexo das águas calmas do rio.

 

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De entre os muitos espetáculos que se associaram ao real casamento, distinguiu-se a récita no teatro S. Carlos, moderna e extraordinariamente iluminado com luz elétrica. Estava pleno de glamour, começando na plateia “quase toda cheia de toiletes vistoras e elegantes”, passando pelos camarotes, com senhoras “decotadas e de manga curta” e homens “de casaca ou de farda”, culminando na família real, muito aplaudida. Do espetáculo em si, pouco se fala, até porque o palco estava cheio de público que, não conseguindo lugar, se tinha para ali esgueirado na ansia de um relance de tanto luxo e espavento.

 

No dia 24, o Paço da Ajuda acolhia uma receção “com mais de 200 talheres” e, no dia seguinte, houve parada militar, em que se estrearam novos uniformes que, segundo o exigente jornalista d’O Occidente**, faziam “mau efeito”, para o que muito contribuíam os penachos dos capacetes da cavalaria e da artilharia, que eram de “um mau gosto deplorável”.

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 A 26 e 28 houve corridas de cavalos, atividade importada que não reunia – e não reúne ainda – muito público entre os portugueses. De resto, no primeiro destes dias, o Paço da Ajuda recebeu um baile para o qual se fizeram 2.700 convites, entre os quais para os jornalistas, pela primeira vez convidados para a festa. A afluência foi tanta que às “2 horas da noite ainda entravam nas salas senhoras que desde as 11 horas esperavam na longa fila de carruagens”, que chegava quase até Alcântara.

O mesmo mar de gente se viu na corrida de touros organizada pelo Turf Club em honra dos noivos, “muito animada”, mas “insuportável pela enorme quantidade de gente que enchia as trincheiras”.

As festas terminaram com récita de gala no teatro D. Maria, mais foguetório e o fantástico efeito da iluminação nos montes da “outra banda”, feita à custa de barricas de alcatrão a arder, a que se somaram cinco grandes focos de luz elétrica que brilharam toda a noite a partir do couraçado Itália e da corveta Afonso de Albuquerque.

 

 

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À margem

Capturarcasamento 9.JPGA versão oficial dos acontecimentos diz que, embora o real enlace tivesse obedecido a todas as formalidades – e negociações – exigidas pela época e condição dos nubentes, a união não foi simplesmente um casamento de conveniência, mas sim “um romance de amor”, como titulou a Folha ilustrada. O herdeiro do trono, louro, quase angelical, não se tinha enamorado da sua noiva “pelos olhos do interesse do Estado”, antes “fez-lhe a corte como um rapaz de 20 anos pode galantear uma rapariga formosa”. “Amaram-se príncipes como se amam dois burgueses, ternamente, expansivamente, sem se importarem com a etiqueta para nada”, assegurava o jornal, ajudando assim a humanizar uma já estafada monarquia. Ao contrário das princesas de hoje em dia, cujas “vidas passadas” enchem páginas de Internet e jornais, D. Maria Amélia de Orleães, um pouco austera nos seus apenas 21 anos e filha de uma das mais nobres famílias da Europa, dizia a Folha Ilustrada, história não tinha, porque “não têm história as rosas que desabrocham e as auroras que despontam”. O mesmo se aplicava a D. Carlos, de 23 anos de idade, aparência garbosamente nórdica: “Não tem história, muito melhor, tem futuro” e “educação completa de príncipe e de homem”, asseverava o jornalista.

Mas isso é outra história...

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* Igreja hoje mais conhecida como de São Domingos, junto ao Rossio (praça D. Pedro IV).

** Gervásio Lobato.

 

Fontes

Hemeroteca Municipal de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

A Illustração Portugueza – Semanário – Revista litterária e artística

2º ano, nº44 – 17 mai. 1886

2º ano, nº45 – 24 mai. 1886

 

O Occidente

9º ano, volume IX, nº 267 – 21 ma.i 1886

9º ano, volume IX, nº 268 – 1 jun. 1886

9º ano, volume IX, nº 269 – 11 jun. 1886

9º ano, volume IX, nº 270 – 21 jun. 1886

 

 

Biblioteca Nacional de Portugal

www.purl.pt

A Folha Illustrada

Typographia do Correio da Manhã, 1886

 

Decreto real, 13 mai. 1886, Imprensa Nacional, 1886

 

Programa de todos os pomposos festejos que se realizarão em Lisboa para solemnizar o casamento de S.A.R. o Príncipe Carlos Duque de Bragança, com a princesa Maria Amélia d’Orleans, Typographia Elzeviriana, Lisboa 1886.

 

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