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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Quando o terror andou à solta pelos montes

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Dizimaram rebanhos a tiro e golpes de foice, arrasaram searas, destruíram colmeias, incendiaram e roubaram. Prometeram um banho de sangue aos que teimaram em permanecer nas suas terras. A “guerra dos montes” ditou o fim de três aldeias.

 

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Diz o ditado que “se queres ver um pobre soberbo, dá-lhe a chave do palheiro”. O que acontecerá então se ele se tornar dono das terras onde vivem outros mais pobres do que ele? Em pleno século XX, a ganância virou vizinhos contra vizinhos, espalhou a violência e a destruição, apenas deixando ruínas onde antes vivia gente em paz. Este conflito que devastou três aldeias ficou conhecido como a “guerra dos montes”.

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Por escritura assinada a 6 de outubro de 1923, foram 604 as famílias do Rosmaninhal (Idanha-a-Nova) que se tornaram proprietárias das terras que tinham pertencido ao 1º Visconde de Morão e onde existiam as localidades de Cobeiras, Alares e Cegonhas (Velhas), habitadas por cerca de 1200 indivíduos. A selvajaria teria início logo no dia seguinte.

Cerca de dois mil rosmaninhalenses invadiram Alares, queimaram palheiros, destruíram hortas e alfaias agrícolas. Seria a primeira de muitas incursões naquele e nos outros dois aglomerados.

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Durante dois anos, os do Rosmaninhal, manipulados por outros interessados na contenda ou tomando as dores dos seus que não podiam tomar posse do que haviam comprado, espalharam o pavor entre os outros povos que ali viviam havia muito, com a anuência dos anteriores senhores, a quem pagavam um tributo.

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Tudo serviu para tentar expulsar os “monteses”. Destruíram centenas de colmeias, dizimaram rebanhos a tiro e golpe de foice; arrasaram searas; colheram bolota que não lhes pertencia; roubaram e deitaram fogo ao que encontraram pelo caminho. Agrediram homens, mulheres e até crianças. Ameaçaram com um banho de sangue os que teimaram em ficar.

Em paralelo, as partes esgrimiam argumentos em processos judiciais que se arrastaram nos tribunais e alguns importantes da zona lograram retirar proveito desta luta sem quartel que as autoridades locais tentaram, em vão, apaziguar.

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As gentes de Rosmaninhal recusaram acordos. Já não pareciam querer apenas o que pertencia a alguns dos seus. Antes, pareciam nutrir pelos povos de Cobeira, Alares e Cegonhas (Velhas) um ódio irracional.

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Em meados de 1925, o cansaço e o desânimo começaram a tomar conta dos acossados.

Eram em menor número que os inimigos, encontravam-se dispersos e enfraquecidos.

Pouco a pouco, foram abandonando o chão onde havia um século se haviam refugiado, fugidos das invasões francesas e de outros perigos. Ali tinham desbravado as terras incultas até lhes darem sustento, construíram as suas casas e criaram família.

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Aos poucos foram partindo. Os de Alares rumaram a Raiz, os de Cegonhas fundaram outra povoação com o mesmo nome não muito longe dali, e os de Cobeira distribuíram-se pelos dois locais. Fundaram-se novos montes, Soalheiras e Coutos de Correias. Um grande número seguiu para Malpica do Tejo, Ladoeiro e Monforte da Beira, onde alguns tinham origem remota.

O assunto, que na “cidade grande” ficou conhecido como a “questão do Rosmaninhal”, foi falado na imprensa e até pelos deputados da Nação.

Mas, talvez pela distância e apesar do alarde, a solução só ficaria selado já na década seguinte, sete anos depois do seu início, com intervenção ministerial.

O Estado expropriou as terras e fê-las dividir em 759 glebas, de idêntica dimensão e valor produtivo, que sorteou por igual número de interessados, alguns dos quais tiveram de endividar-se junto da Caixa Geral de Depósitos para poder adquirir o seu quinhão.

Foi uma operação demorada e complexa, que exigiu bom senso e diplomacia.

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Houve a preocupação de não atribuir parcelas próximas a adjudicatários do Rosmaninhal e das outras aldeias, prevenindo conflitos, porque houve feridas que insistiram em não sarar.

Tantos aos depois, em Alares, Cobeira e Cegonhas (Velhas) persistem as ruínas das casas abandonadas à pressa e das vidas interrompidas, espetadoras silenciosas desses estranhos tempos em que o terror andou à solta pelos montes.

 

 

À margem

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José António Morão – o 1º Visconde de Morão - foi uma figura importante em Castelo Branco. Grande proprietário, industrial – fundador da fábrica de lanifícios Morões e Cª – foi também provedor da Santa Casa da Misericórdia e deputado, para além dos cargos políticos assumidos localmente. Não terá, no entanto, escapado à acusação de fraude eleitoral nas eleições de 1847, na sequência das quais houve grandes tumultos em que a sua própria segurança esteve em causa.

Foi por morte do seu filho, José Guilherme de Paiva Morão, que se deram as partilhas por quatro herdeiros que resultaram na denominada “guerra dos montes”, com a venda das aldeias no termo do Rosmaninhal.

jose guilherme de paiva morao.jpgJosé Guilherme foi igualmente pessoa destacada na região. Esteve entre os fundadores da agência do Banco de Portugal em Castelo Branco e às terras herdadas de seu pai juntou outras compradas a bom preço nos leilões que alienaram os bens de algumas ordens religiosas entretanto extintas. Teve em vida a sua dose de violência e revolta popular.

De facto, entre os terrenos que adquiriu estava, em 1889, a Herdade do Soudo, no termo de Zebreira, igualmente no concelho de Idanha-a-Nova. Os problemas começaram quando o novo senhor quis tomar posse plena e as gentes daquele lugar não aceitaram tal sujeição, repelindo-a veementemente. Não faltaram desacatos violentos e ações judiciais de parte a parte.

Mais hábil que os seus sucessores no Rosmaninhal, José Guilherme e os lavradores residentes acabariam por chegar a um acordo que vigoraria até 1954, já depois da morte do proprietário, ocorrida em 1920.

A herdade acabaria por ser comprada pela Junta de Freguesia de Zebreira que, não tendo meios para tal, pediu dinheiro emprestado ao próprio Estado, contraindo uma dívida que só ficou totalmente paga em 1983.

Mas isso é outra história…

 

 

 

Fontes

Rosmaninhal – Lembranças de um mundo cheio - Monografia, de Mário Chambino – AÇAFA – Associação de Estudos do Alto Tejo; 2000. Disponível em: Calaméo - Monografia do Rosmaninhal (calameo.com)

 

 

Diário de Lisboa, nº, 17 jun 1925 Disponível em www.hemerotecadigital.cm-lisboa.pt

 

A elite municipal de Castelo Branco entre 1782 e 1878; Dissertação de mestrado em História do Século XIX e XX, de Nuno Manuel Camejo Carriço Pousinho; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Universidade Nova de Lisboa – 2001. Disponível em:
https://run.unl.pt

 

Consanguinidade próxima ao dr. Ribeiro Sanches (1699-1783), de Pedro Valadares; Revista da ASBRAP - Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia nº 19. Disponível em: http://www.asbrap.org.br

 

Diário da câmara dos deputados - Sessão N.º 87; 21 maio 1924. Disponível em: https://debates.parlamento.pt/

 

Análise Grandeza e decadência, de Elisa Calado Pinheiro, citando Elisa C. Pinheiro, Rota da Lã…, vol I, 2008, pp.  263-264. Disponível em:

Notas de Circunstância: Análise Grandeza e decadência (notasdecircunstancia.blogspot.com)

 

Sete séculos e meio: profundidade histórica de um sistema de produção arcaizante, de Pedro Manuel Agostinho da Silva; Textos de História. v 5. n- 2; Universidade Federal da Bahia – 1997. Disponível em: https://periodicos.unb.br

 

Viver a Raia, - Newsletter da Associação Raiaeventos . Dez 2017 -citando texto de Pedro Rego. Disponível em: Viver A Raia 1 (calameo.com)

Diário do Governo; I Série, nº 61 – Decreto 22316 – 16 mar. 1933.

Diário do Governo; I Série, n.º 70 – Retificação - 27 mar 1933

 

Disponível em: Diário da República Eletrónico - DRE

 

Agência do Banco de Portugal em Castelo Branco - Banco de Portugal - Archeevo (bportugal.pt)

www.geneall.net.pt

 

 

Imagens

 

Revista Viver a Raia - Newsletter da Associação Raiaeventos . Dez 2017 -Imagens cedidas pela família Lobato Pina e recolhidas por Vítor Camisão. Disponível em:

Viver A Raia 1 (calameo.com)

 

http://www.transumancia.com/evento/alares-rosmaninhal

 

https://andarilho.pt/

 

www.geni.com

 

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