Quando o verdadeiro teatro está nos dramas familiares
A pública troca de acusações – nos jornais e nos tribunais – entre a atriz Maria Carolina Pereira e o seu pai mobilizou paixões e opiniões, na década de 70 do século XIX, manchando a carreira teatral da jovem e acabando com a saúde do progenitor, um conhecido professor e intelectual dos sete ofícios.
O que qualquer artista quer na sua estreia é o máximo de publicidade que atraia as atenções do público. Isso foi precisamente o que teve a atriz Maria Carolina Pereira naquele inverno de 1876, em vésperas de pisar o palco pela primeira vez. A fazer lembrar algumas lavagens de roupa suja que enchem as nossas modernas redes sociais, a jovem e a sua ilustre família envolveram-se numa acesa polémica que fez correr muita tinta nos jornais e não mais deixaria de manchar a sua carreira que, talvez por isso, não foi longe.
João Félix Pereira, pai da debutante, era um conhecido intelectual da sua época, que ficou célebre por ser versado em muitos temas – era médico, agrónomo, engenheiro civil e professor jubilado do Liceu Nacional de Lisboa. Escreveu sobre quase tudo e em muitos idiomas. Da medicina, à taquigrafia; da agricultura, à história e à ficção…de alemão, a grego; de inglês a italiano, de russo, a francês ou castelhano…traduziu e dissertou de mote próprio em numerosas obras. O problema é que também resolveu escrever sobre a vida familiar, mais propriamente sobre os problemas que minaram a relação com a sua bela filha.
Tratava-se provavelmente do último recurso de um pai desesperado por recuperar a estima da sua única descendente, que, “mal aconselhada”, se havia retirado de “casa paterna”, onde “era adorada” e, “sem necessidade nenhuma”, estava prestes a “dedicar-se à vida laboriosa de atriz”, para a qual, entendia o progenitor, em anúncio publicado na imprensa diária, não dispunha, decerto, das “indispensáveis forças físicas”.
A zanga terá começado com a aplicação que João Félix Pereira fez da herança que o sogro – o cirurgião António Sequeira da Nazareth – havia deixado à neta. Investiu em inscrições da Junta de Crédito Público, mas, como Maria Carolina era filha única, entendeu ser mais seguro averbar os investimentos em seu nome e não no da sua herdeira.
Ora, supostamente manipulada pelo general António Pedro de Azevedo e pela filha deste, Maria Carolina ter-se-á insurgido contra esta atitude do pai, incompatibilizando-se com ele e deixando o lar familiar.
João Felix Pereira entendia que o objetivo da dupla era extorquir dinheiro à filha e chegou a interpor uma ação jurídica contra o militar, da qual sairia derrotado. Não baixou os braços e fez publicar não uma, mas duas longas explicações das suas razões e um drama sobre o assunto, que mereceram réplica e só contribuíram para aumentar a polémica, com mais achas para a fogueira do falatório.
Os dramas familiares, assim trazidos à praça pública, foram o alvo de chacota preferencial da Lisboa de então, ofuscando a estreia de Maria Carolina no teatro D. Maria II, que mereceu enchente, mas não pelas melhores razões, deixando “desencontradas impressões” no “ânimo dos espetadores”, divididos entre a curiosidade de ver a filha desavinda e apreciar a mais recente atriz de comédia da cidade.
Maria Carolina ainda foi atriz pelo menos durante sete anos, mas nunca alcançou o estrelato. O seu “tipo finamente aristocrático”, o seu “talento brilhante”, passou por uma “penumbra imerecida e bárbara” por parte da critica, “avara de carícias e de conselhos” para com a artista.
O episódio inicial adejou sempre, qual fantasma nunca esquecido, sobre a sua carreira teatral e foi fatal para o pai, que, incapaz de resolver entre quatro paredes as questões pessoais, “abrira as portas do lar doméstico à curiosidade estúpida da sociedade”. O trabalhador incansável viu-se doente e desconsiderado, tendo pedido a jubilação do cargo de professor, embora continuasse a escrever e publicar, o que fazia de forma compulsiva.
À margem
João Félix Pereira escreveu em pelo menos oito línguas e publicou uma obra vastíssima nas mais diversas áreas do saber e até na ficção. Traduziu textos técnicos e literários, assim como produziu estudos inéditos. Era um excêntrico, conhecido pela forma como se vestia - de casaco de alpaca, com uma “algibeira que ia de lado a lado e onde ele metia tudo quanto se pode imaginar”, ”calça branca engomada, sem camisola nem ceroulas ou cuecas” - fosse verão ou inverno. Em alguns meios era visto como um chato, um pedante, alguém que sabe tudo sobre tudo.
Talvez por isso, o seu trabalho, embora de reconhecido valor, é frequentemente alvo de troça dos intelectuais da época. Camilo Castelo Branco refere-o em duas obras, como sinónimo de verborreia e de colecionador de “canudos”. Também Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão discorreram sobre ele, dedicando-lhe duas farpas, nomeadamente ironizando ser João Félix “na ciência o mesmo que são na música os homens dos sete instrumentos, que fazem uma orquestra batendo com todas as partes do corpo”.
Quando morreu, em 1891, foi a filha desavinda – espera-se que já reconciliada, que deu a notícia à sociedade. Maria Carolina não mais deixaria as páginas dos jornais, figurando nas crónicas elegantes também porque casaria com João Gagliardi, o mais conhecido professor de equitação da Lisboa de então, o que se prestou a trocadilhos e piadas entre os mais atrevidos cronistas da época.
Mas isso é outra história
.....................
Nota: as imagens 2, 3 e 6 são meramente ilustrativas da época. Na imagem de Grupo está presente Maria Carolina Pereira, mas nãpo consegui apurar qual é. A imagem 1 é da artista, admirada peloa sua beleza.
..........................
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
Diário Illustrado
5º ano; nº1416 – 15 dez 1876
5º ano; nº1418 – 17 dez 1876
5º ano; nº1422 – 22 dez 1876
12º ano; nº3579 – 25 abr 1883
12º ano; nº3581 – 27 abr 1883
20 º ano; nº6693 – 17 nov 1891
27 º ano; nº9059– 14 jun 1898
O Occidente – Revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro
6ª ano; vol VI; nº175 – 1 nov 1883
14ª ano; vol XIV; nº465 – 21 nov 1891
Brasil-Portugal
Nº306 – 16 out 1911
O tiro civil
Ano 7º; nº225 – 14 dez 1901
Tiro e Sport
Ano X; nº277 – 29 fev 1904
Biblioteca Nacional de Portugal em linha
Discurso que no conselho de guerra onde foi julgado o general António Pedro de Azevedo devia ser proferido por João Félix Pereira; Lisboa; 1975
Uma selecta de textos alemães traduzidos por João Félix Pereira: estudo e edição genética; tese para obtenção do grau de Mestre em Crítica Textual de Joana Isabel Plácido Fernandes; Universidade de Lisboa; Faculdade de Letras – 2015 Disponível em: Repositório da Universidade de Lisboa: Uma selecta de textos alemães traduzidos por João Félix Pereira: estudo e ediçao genética (ul.pt)
O Instituto de Agronomia e Veterinária [1852- 1910] Ciência e Política na segunda metade de Oitocentos, tese para obtenção do grau de Mestre em História, na especialidade História Moderna e Contemporânea de João José de Almeida Barata; Universidade de Lisboa; Faculdade de Letras – 2019 Disponível em: Repositório da Universidade de Lisboa: O Instituto de Agronomia e Veterinária (1852-1910) : ciência e política na segunda metade de oitocentos (ul.pt)
https://archive.org/stream/pontosnosii1188unse/pontosnosii1188unse_djvu.txt
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
José Artur Leitão Bárcia
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000616
José Chaves Cruz
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000471
Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000747
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001755