Quando os portugueses salvaram o Preste João e o misterioso reino da Abissínia
Os portugueses são um povo arrojado e, em determinadas circunstâncias, disposto a tudo. Talvez isso explique porque é que acedemos ao pedido de ajuda de um remoto país, que ninguém sabia muito bem onde ficava. Fomos socorrer esses irmãos de fé e vencemos os seus inimigos, mas, em tão dura campanha, perdemos o líder desse minúsculo exército luso, martirizado e decapitado pelos infiéis depois de ter demonstrado uma tão sobrenatural valentia, que até houve quem defendesse que devia ser elevado à categoria de santo.
Essa terra situada nos confins de África era a Abissínia. O herói que lá ficou era Cristóvão da Gama, infausto filho do conhecido navegador que descobriu o caminho marítimo para a Índia.
Estávamos em 1541. Havia muito que portugueses e abissínios procuravam uns pelos outros. Na Europa, desde o século XII que persistia a lenda de haver no continente africano ou na Ásia uma isolada nação cristã, governada por um imperador a que se deu o nome de Preste João e sobre o qual se construiu um imaginário de opulência e magnificência sem paralelos neste mundo.
Não admira, pois, que os reis de Portugal tivessem enviado espiões e embaixadas para procurar este reino misterioso, tanto mais que, ao que se tinha apurado, tinha uma localização estratégica para o controlo do Mar Vermelho – Roxo, para nós - tão importante – ainda hoje – para o comércio e, em especial, para o domínio da navegação no Índico, que os portugueses ambicionavam.
Depois de viagens que demoraram décadas, cartas extraviadas e presentes perdidos, emissários que não regressaram e tentativas goradas, conseguiu-se estabelecer contacto e, da parte do jovem senhor daquelas terras, veio um angustiado apelo, pois a ameaça constante das tribos muçulmanas muito penalizava as suas gentes e fazia perigar a existência do País.
A difícil situação foi avaliada pela nossa armada, em escala no porto de Maçuá, a caminho da India e liderada por Estevão da Gama. Este acabaria por nomear o seu irmão mais novo, Cristóvão, para encabeçar o grupo de 400 homens que se embrenharam por aquelas serranias inóspitas à procura do inimigo, imam Ahmad bin Ibrahim el-Ghazi – O Canhoto - também conhecido com Rei de Zeila.
As tropas deste temível guerreiro eram muito mais numerosas e tinham, até aí, vencido todas as batalhas contra os abissínios e o imperador Galawedos - nome demasiado estranho para os portugueses, que lhe chamaram Cláudio. Por aquele tempo, o soberano abexim andava praticamente fugido, um refugiado na sua própria terra, tal como sua mãe.
Os portugueses foram encontrá-la abrigada num mosteiro, e, desde essa data, a rainha fez questão de, com o seu séquito, juntar-se ao nosso contingente, acompanhando as batalhas e os longos períodos de paragem e preparação.
A contenda demorou três muito sangrentos e penosos anos. Os portugueses seguiam maioritariamente a pé, sob um sol abrasador. Era frequente não terem água potável para beber e os caminhos serem tão difíceis, que era necessário desmontar os carros de transporte para transpor os obstáculos.
O primeiro embate foi a tomada da serra (amba) Sa-nayt, praça-forte dos muçulmanos, considerada inexpugnável pelos abissínios, que julgaram-nos loucos por atacar aquele local sem acessos e de onde podíamos facilmente ser vistos e repelidos.
Uma autêntica parede intransponível, que os nossos conquistaram com tática bem definida e muita audácia.
O sucesso reforçou a imagem que os abissínios já tinham construído de nós - enviados de Deus para os salvar - e marcou o tom para os confrontos que se seguiram, as batalhas nos campos de Iarte e na “colina dos Judeus”.
Em todos os momentos, Cristóvão da Gama foi a inspiração, a sabedoria, o sacrifício, o incentivo e a coragem do seu exército. Foi a alma e o coração dos seus homens.
Imagine-se, pois, o impacto da sua captura e morte, após a única derrota portuguesa, em Ofla.
Só depois deste desaire é que os portugueses se conseguiram juntar aos – poucos – homens do Imperador. Foi Cláudio quem liderou um exército luso-abexim na batalha de Waina Daga, onde até os feridos e aleijados quiseram participar, pretendendo vingar a morte do seu capitão. O desejo de desforra seria satisfeito, uma vez que o Rei de Zeila tombou nesta refrega e a vitória sorriu aos cristãos. Como seria de esperar, também perdeu a cabeça.
A guerra estava assim ganha, embora o imperador se visse a braços com uma nação fragilizada e pobre, tanto mais que a mulher d' “O Canhoto” conseguiu fugir, levando todo o tesouro resultante de anos de pilhagem.
A destruição deixada por estas invasões muçulmanas – nomeadamente nas igrejas – a força salvadora dos portugueses, bem como o heroísmo de Cristóvão da Gama são recordadas até hoje pelos abissínios, hoje etíopes. Não obstante, as tentativas de canonizar este filho mais novo de Vasco da Gama foram infrutíferas, muito porque a influência de Portugal junto do Papa andava pelas ruas da amargura.
À margem
O reino do Prestes João, hoje território da Etiópia, nada tinha que ver com a imagem mítica que o precedera. O seu imperador vivia como nómada, viajando com a sua comitiva pelo País, montando as tendas onde fosse mais conveniente, pois nem palácio detinha. As terras, inóspitas, de difícil acesso, secas e depauperadas por anos de conflitos com os vizinhos, foram uma desilusão para os primeiros portugueses que ali chegaram. Essa honra coube a Pero da Covilhã, que havia sido enviado para tomar conhecimento das dinâmicas comerciais da zona e alcançou aquela corte longínqua em 1494.
Estava então no poder Alexandre, mas foi o sucessor deste que não mais deixou abalar o emissário de D. João II. Deram-lhe terras e mulher e lá ficou, até ao fim dos seus dias.
O rei português seguinte, D. Manuel, enviou uma embaixada liderada por D. Rodrigo de Lima e recebida por David II (Lebna Dengel). Seguiu também um sumptuoso conjunto de oferendas que, por vicissitudes diversas, se perdeu pelo caminho, facto que terá contribuído para uma certa deceção inicial do imperador. Acresce que, percebendo a verdadeira dimensão continental de Portugal, ao localizá-lo num mapa-múndi que lhe levaram, aquele teve sérias dúvidas sobre utilidade que um país tão pequeno poderia ter.
Não podia adivinhar que seriam os portugueses, anos mais tarde, já no reinado de D. João III, a salvar o seu filho Cláudio e a Abissínia de desaparecer enquanto Estado, porque nessa época, o que verdadeiramente lhe interessou foram as calças que os nossos emissários vestiam e as armas de fogo, que seriam decisivas nas vitórias obtidas pelas tropas portuguesas contra os muçulmanos.
Independentemente do nome do imperador, para os portugueses, o líder abexim seria, para sempre, Preste João, descendente de Salomão e da rainha de Sabá, cuja dinastia terminou em Haile Sellassié, que visitou Portugal com pompa em 1957 e cujo regime se finaria no mesmo ano daquele que então governava no nosso País.
Mas isso é outra história….
Fontes
Elaine Sanceau, Os Portugueses na Etiópia, Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1961.
Luís Costa e Sousa (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar), Campanha da Etiópia 1541-1543 Portugueses em socorro do Peste João, Lisboa, Tribuna da História, Edição de Livros e Revistas, dez. 2008. Disponível aqui:
https://www.academia.edu/32151352/CAMPANHA_DA_ETI%C3%93PIA_1541-1543.pdf
Luís André Nepomuceno (Universidade Federal de Viçosa), Miguel de Castanhoso e o Martírio de D. Cristóvão da Gama, in ALEA vol. 24/2, p. 295-312, maio-ago. 2022. Disponível aqui:
https://www.scielo.br/j/alea/a/8BQ4QsG6p87sTLvxPH54grm/?format=pdf
Imagens
Biblioteca Nacional de Portugal
Cristóvão da Gama desbarata o Usurpador,
Cristovao_da_Gama_in_Abyssinia.jpg (1288×922) (wikimedia.org)
Maçuá no século XIX
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ma%C3%A7u%C3%A1#/media/Ficheiro:ST-Massowa.jpg
Ilustrações de António Lucena, no livro
Elaine Sanceau, Os Portugueses na Etiópia, Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1961.