Quiseram domesticar o Carnaval
Proibiram-se as máscaras e, quando estas voltaram, eliminaram-se os ovos, os baldes de água, os cartuchos de pó e as saraivadas de grão e tremoço... Por cada limitação, surgiram momentos de rebelião, nas ruas e nos salões; entre o povo e os fidalgos, cometendo-se excessos a que até os reis não conseguiram resistir.
Tempos houve em que as máscaras eram proibidas. Tentava-se, assim, evitar assaltos, assassinatos e todo o tipo de tropelias graves cometidas na época do Carnaval por indivíduos com as caras tapadas, nas ruelas e becos dos bairros mais populares de Lisboa. Muitos e em diversas épocas, foram os governantes que tentaram domesticar o Entrudo, mas não menos foram os momentos de rebeldia. E não se pense que estes desobedientes pululavam apenas entre as classes mais baixas, porque a história dá conta dos devaneios do rei D. Miguel, de festas à margem da lei organizadas pela alta nobreza e até de autênticas batalhas de comida em pleno teatro de São Carlos. Pelas ruas andavam os xexés, teimosamente lembrando tempos de maior abertura e liberdade, quando o povo não se contentava com desfiles ordeiros e bailes tão concorridos quanto sensaborões, que se tornaram a norma a partir do início do século XX.
O veto ao uso de máscaras foi tão interiorizado que levou ao ridículo de toda a corte nacional comparecer vestida de gala com uma máscara presa ao ombro com uma fita. Foi a interpretação possível de um baile de máscaras, esse que festejou a negociação do casamento entre o nosso príncipe D. João e a princesa Carlota Joaquina e que muito deve ter surpreendido o embaixador espanhol, que o organizou.
Cerca de quatro décadas depois realiza-se o primeiro baile típico de Carnaval, em Lisboa. Foi em 1823, no Pateo do Patriarca (Bairro Alto) e contrariava a interdição com mais de um século, aliando danças e máscaras.
No ano seguinte, o Entrudo teve uma conotação funesta, com a morte misteriosa do galante marquês de Loulé, convidado pela família real a passar a época em Salvaterra. Terá sido assassinado enquanto esperava pelo baile de máscaras.
“Todo o prestigio do Carnaval romântico” residia “na máscara, que intriga, e na dança, que excita”, mas parecia que, de cada vez que as caras tapadas se impunham, davam aso ao crime ou ao escândalo. Quem imaginaria que três ou quatro dedos de veludo e um nariz de cera pudessem ter o condão de tanto modificar comportamentos e suscitar a ira das autoridades?
Apesar da má fama, no entanto, as máscaras voltaram a tornara-se habituais. Andavam pelas ruas e nos salões, como no sarau que Francisco Lodi organizou no Teatro de São Carlos, em 1836, conseguindo passar incólume à tentação da intendência de polícia, que queria impedir os mascarados. Este evento abriu-lhes as portas de tão exclusiva sala, dando o mote para que o mesmo se fizesse um pouco por todo o lado, chegando aos festejos mais elaborados e feéricos organizados pelo Conde de Farrobo.
O forrobodó atingiu o seu auge precisamente no tumultuoso reinado de D. Miguel, que não desperdiçava uma oportunidade de cavalgar sem destino, bailes adentro, com a sua trupe, semeando a real confusão e arrancando suspiros das damas, que adoravam o rei marialva.
Ora, com a mudança do regime, mudaram também as sensibilidades. Os ventos liberais voltaram a tolher o Carnaval, mas criaram o Xexé, essa figura que durante muito tempo foi o símbolo do Carnaval lisboeta, mas também do ridículo dos poderes políticos anteriores (ver À margem).
Até que se quis inovar e, achando o Xexé pouco digno dos novos tempos, no dealbar do século XX, toda a sua genuinidade foi substituída por figuras copiadas dos carnavais de Veneza ou Paris, com vestimentas iguais aos guarda-roupas dos teatros. O Carnaval arruaceiro, irreverente e pitoresco foi suplantado por desfiles organizados, ordeiros, bonitos, mas sem ponta de divertimento. O povo passou de ator a espectador.
Proibiram-se os cartuchos de pó, as seringas e bisnagas, os tremoços e afins. Em substituição organizara,-se batalhas de flores...
Mas, tanta proibição gera invariavelmente desobediências, Como aquele dia de 1903 em que a mais alta aristocracia, em protesto contra a repressão imposta pelo Governo Civil, inaugurou uma verdadeira “guerra do bufete” em pleno São Carlos, atirando croquetes de galinha de camarote para camarote e encharcando-se com água gasosa esguichada de finos sifões, enquanto a família real assistia ao inusitado tumulto. E quando se acabaram os croquetes, foram as fatias de queijo Gruyere e pão que voaram de nobres mãos, fazendo pontaria aos decotes das senhoras.
De pouco adiantou. O Carnaval civilizado tinha vindo para ficar e, ainda hoje, já com uma incontornável e pouco compreensível influência brasileira, pouco mais se mostra que desfiles pacatos, com poucas exceções de insubordinação na sátira social e política que pontua os escassos festejos verdadeiramente portugueses.
À margem...
Saía à rua com a sua casaca verde, cabeleira de estopa com laçarote no rabicho, bicorne napoleónico, luneta, bengala ou bastão ameaçador, sapatos de fivela. O Xexé ou “salsa”, pela cor da indumentária, era “a síntese ridícula, comicamente vingativa da época do intendente, da inquisição e da forca”, mas também dos peraltas “amigos” de Pombal e dos excessos dos miguelistas. Era uma personagem que afrontava todos os que estavam ligados ao “tempo da outra senhora” e não se coibia de criticar os exageros do regime em vigor. Desfilava ousado por entre a sua corte de velhotas de capote e lenço na cabeça, enfrentando e instigando saraivadas de tremoços, nuvens de pó e esguichos de água de origem duvidosa, acolhidos com gargalhadas, gritos e urros. Era o louco escape de um ano inteiro de trabalho e bom comportamento, Era o resumo estapafúrdio do passado cuja memória foi passada de boca em boca. Como os desvarios atribuídos a D. Miguel, que adorava diversões à sua maneira e, conta-se, “largava toiros às saloias de Queluz ou metia-os nos corredores do Paço da Bemposta” para estupefação da corte.
Mas isso é outra história...
…..........................
Fontes
Belle Époque – A Lisboa romântica do séc. XIX e início do século XX; de Paula Gomes Magalhães; Esfera dos Livros – 2014
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portugu
2º ano, nº70 – 06 mar. 1905
II série, nº51 – 11 fev. 1907
Biblioteca Nacional de Portugal em linha
www.purl.pt
Diário Illustrado
31ºano; nº10.395 – 11 fev. 1903
31ºano; nº10.396 – 13 fev. 1903
32ºano; nº10.768 – 22 fev. 1903
32ºano; nº10.760 – 23 fev. 1903
Sua Magestade Imperial o Senhor D. Miguel I, Rei de Portugal e dos Algarves..., litografia de Pedro António José dos Santos
CDU 929.7Miguel I, Rei de Portugal(084.1)
Correio Nacional – Jornal da tarde
XI ano; nº 2.989 – 22 fev, 1903