Teimosia do juiz cria guerra legal entre portugueses e espanhóis
Durante ano e meio, o juiz de Alcácer do Sal contrariou ordens de dois ministérios e provocou um verdadeiro conflito entre Portugal e Espanha, em disputa pelo direito de gerir a herança de um galego morto naquela vila alentejana. E quem tinha razão, afinal?
A teimosia de um juiz de Alcácer do Sal provocou, em finais do século XIX, um verdadeiro conflito diplomático entre os reinos de Portugal e Espanha, que envolveu os governos nacionais, embaixador e cônsules do País vizinho, numa polémica que durou ano e meio, com a troca de dezenas de cartas e argumentos.
Tudo começou a 10 de dezembro de 1885, com a morte de um cidadão espanhol. Juan Garcia Lourido, galego de 51 anos, faleceu na casa onde habitava, no nº2 da rua das Douradas. Foi o suficiente para se iniciar a disputa sobre quem teria competência, à luz do convênio entre os dois países ibéricos, para inventariar e distribuir a sua herança.
Contactado pelo vice-cônsul de Espanha em Setúbal, que reclamava esse poder para si, o juiz de Alcácer negou-lhe esse privilégio. E continuou negando, recusando e refutando todas as numerosas tentativas que se seguiram, por parte do cônsul geral e do embaixador espanhol em Lisboa. Não arredou pé também face às ordens dos ministros dos Negócios Estrangeiros e dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, que chegaram a ordenar ao delegado do procurador régio junto da Comarca de Alcácer do Sal que exigisse ao juiz a libertação do processo, no sentido de as autoridades espanholas o poderem gerir.
A dada altura, deixou mesmo de responder às cartas que lhe eram enviadas sobre este assunto. Um “proceder inqualificável” e “obstinado”, não acatando disposições superiores, nem a lei, como considerou o embaixador espanhol, em comunicações bastante irritadas ao nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, lançando ao governo português alguns remoques à sua dificuldade em fazer-se obedecer.
Ano e meio depois, esgotadas que foram todas as tentativas de demover o juiz, bem como as ações legais entrepostas, vem o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa esclarecer o que, afinal, ninguém parece ter-se lembrado antes, para além do famoso magistrado de Alcácer. É que, embora o morto fosse espanhol, os seus herdeiros – a mulher, Maria Filomena Palmeiro, e um filho menor – eram portugueses, logo não se lhes aplicava a legislação invocada pelos espanhóis, devendo ser as autoridades portuguesas a tratar do assunto.
Isto quer dizer que o magistrado teve sempre razão e que vingou a sua interpretação dos factos.
Resta revelar que a herança de Juan Garcia Lourido constava de pouco mais que duas embarcações que, como estiveram abandonadas na “praia” de Alcácer durante o tempo que durou o braço de ferro entre espanhóis e o juiz, de pouco ou nada valiam quando finalmente foram entregues à família.
À margem
E quem é o inflexível juiz da Comarca de Alcácer do Sal de que tanto se falou mas cujo nome nunca é referido nas cartas? Pelos registos de tomadas de posse de magistrados, pode com alguma certeza dizer-se que se tratava de Luiz Cândido de Faria Vasconcelos, nascido em Pinhel, em 1861, que na juventude andou destacado em diversas comarcas do País, e chegaria a juiz do Supremo Tribunal de Justiça. Casado com a pianista Maria Rita Sena Belo de Vasconcelos, foi pai de António Sena Faria de Vasconcelos Cabral Azevedo (na imagem), que poderá ter chegado a viver em Alcácer, porque era ainda uma criança quando o pai ali foi juiz.
Provavelmente consciente da férrea vontade do progenitor, formou-se em direito como era exigência do pai. Depois, entregou-lhe o diploma e partiu para Paris e Bruxelas, prosseguindo a sua verdadeira vocação. Doutorou-se em ciências sociais e seguiu a carreira de cientista social e pedagogo, com amplo destaque, obra executada e publicada no início do século XX, no âmbito do Movimento da Escola Nova, na Europa, mas também em Cuba e Bolívia – para onde foi após o eclodir da I Grande Guerra – e com uma influência que se estendeu a toda a América Latina. De regresso a Portugal, continuou a destacar-se como professor universitário e investigador.
É pai de Águeda Sena (na imagem), bailarina, coreógrafa, atriz e professora de dança de relevo em Portugal e fora de portas (falecida em 2019), o que prova que, mais do que as leis, a pedagogia e a música são elementos fortes na família.
Mas isso é outra história…
............................
Fontes
Negócios externos – Documentos apresentados às cortes na sessão legislativa de 1889 pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros – Negócios consulares e comerciais – Secção V – Conflictos de Jurisdição entre autoridades judiciais portuguezas e agentes consulares hespanhoes – Lisboa – Imprensa Nacional – 1889.
Disponível em: https://archive.org/details/negociosexterno16portgoog/page/n10/mode/2up
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
Comarca de Alcácer do Sal - Registo de autos de posse
Arquivo Distrital de Setúbal
Paróquia de Santiago – Registos de óbitos
Sistematizados em:
www.tombo.pt
https://geneall.net/pt
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_Sena_Faria_de_Vasconcelos
https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81gueda_Sena
Imagens
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0056
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/02/01/0072
Museu de Marinha
PT/MM/CF/014-013/01657
PT/MM/CF/014-013/01658
http://www.revistadadanca.com/?p=3306