Tentaram matar o jornalista incómodo
Um dos mais antigos jornais do País poderia não ter durado mais que um mês. Pouco habituados a serem confrontados com os seus erros, os políticos tentaram cortar o mal pela raiz, matando o fundador e fechando a gráfica.
1855 foi um ano decisivo para João Carlos d’Almeida Carvalho. Aos 38 anos, tornou-se advogado encartado, fundou uma associação mutualista e liderou a criação do primeiro jornal da sua terra – um dos mais antigos do País. No mesmo ano, uma vingança por pouco não lhe tirou a vida. Os seus escritos começaram a incomodar o poder instalado e o jornalista tornou-se um alvo a abater.
Passava cerca de meia hora das 9 da noite do dia 31 de agosto, quando o redator e diretor d’O Setubalense foi atacado por dois homens, um dos quais lhe desferiu uma facada no abdómen. Sentiu a lâmina entrar pouco acima do umbigo e gritou, mais de espanto que de dor.
Os sujeitos desapareceram a correr na noite e logo um grande número de pessoas acudiu, pois tudo aconteceu naquela que era, já em meados do século XIX, uma das mais movimentadas artérias de Setúbal, a rua da praia, atual avenida Luísa Todi. Cabos de polícia ou outra autoridade, habitualmente abundantes naquela zona, muito próxima do antigo edifício da Alfândega, não foram vistos no local.
Os dias seguintes foram de incerteza e indignação. Almeida Carvalho lutava pela vida. Jornais e jornalistas de todo o País clamavam por justiça contra o que logo foi visto como um crime contra a liberdade de imprensa, não havendo pejo em apontar o dedo a quem, na época, desempenhava as funções de administrador do município e de presidente de Câmara em Setúbal.
Severiano Silvestre Lapa, o administrador, foi visitar o jornalista ferido, mas tal não apaziguou os ânimos. Muitos lembravam-se de o ter ouvido bramar contra os artigos publicados no novo jornal, dizendo: “Ou O Setubalense ou eu!”, ameaçando que o semanário e a sua tipografia seriam encerrados.
Já depois do crime, o ambiente intimidatório continuou.
Misteriosos pasquins impressos em “cartas de enterro”, nos quais se pedia um Padre-Nosso e uma Ave Maria pela alma do diretor esfaqueado, foram afixados por Setúbal; cabos de polícia – dependentes do poder local – apregoaram publicamente ameaças contra o jornal e nas páginas deste deu-se amplo eco de tudo isto: “os bicos das nossas penas não se cortam com a ponta do punhal!”, afirmou-se num clamor repetido em páginas e páginas dos mais importantes periódicos do país, de Norte a Sul.
Agostinho Rodrigues Albino, o presidente da Câmara de Setúbal, era um dos principais alvos, até porque Almeida Carvalho teria afirmado que o homem que o feriu se assemelhava a um familiar do autarca, mas também tendo em conta que a sua gestão tinha sido especialmente visada nos textos do redator que, embora nunca ultrapassando os “limites da decência” e usando sempre de “honestidade e prudência”, denunciara “compadrio na gerência dos negócios públicos”, assegurando que nunca como então os “comedores puderam prevaricar tão desassombrados”.
A imprensa defendia Almeida Carvalho, que até pugnava pelo mesmo partido que estava no Governo e na Câmara – o Regenerador – e aproveitava para atirar pedras ao ministro Rodrigo da Fonseca Magalhães, por alegadamente não intervir nem envidar esforços para apurar quem era responsável pelo ataque ao jornalista. Dizia-se que o punho do assassino estava “protegido pela autoridade administrativa”, já que a investigação para o deter não passou de uma “balofa, vã e ostensiva patuscada local”.
Efetivamente, não há memória de alguém ter sido punido pelo ato, mas até ao final de 1855, a pretexto de integrar os concelhos de Palmela e Azeitão no de Setúbal, tanto Severiano Silvestre Lapa, como Agostinho Rodrigues Albino seriam substituídos e afastados daquele município.
Quanto a João Carlos d’Almeida Carvalho, em 21 de outubro já estava restabelecido e escrevendo no “seu” O Setubalense. Para além desta atividade, foi historiador amador, o primeiro oficial-taquígrafo da secretaria da Câmara dos Pares e político, mas devemos-lhe sobretudo um amplo espólio de documentação reunida ao longo da vida, sobre Setúbal e toda a região, e que constitui um importante recurso de estudo hoje à guarda do Arquivo Distrital.
À margem
O Setubalense foi criado em 1 de julho de 1855, antes dos grandes jornais de Lisboa, como o Diário deNotícias, o Diário Ilustrado ou O Século. A sua história, intimamente ligada à da cidade de Setúbal, teve percalços e interrupções mas ainda hoje persiste. Ao longo destes últimos 164 anos, consoante o regime em vigor, quem o detinha e quem nele escrevia, foi, à vez, regenerador e conservador, oposicionista e situacionista; semanário, diário e trissemanário; matutino e vespertino. Teve vários subtítulos, foi suspenso e ocupado, recriado e vendido, mas nunca perdeu o seu espírito original, de defensor dos interesses de Setúbal e da região em que se insere. Entre proprietários, diretores e redatores principais contam-se nomes como António Rodrigues Manito, José Sérgio de Capeto Barradas e José Groot Pombo (na primeira fase); João Regala; Guilherme Faria; Luís Faria Trindade; Domingos Tavares Roque, Dinis e Carlos Bordalo Pinheiro.
Curiosamente, já nos anos 80 do século XX, um outro João Carlos, neste caso João Carlos Pepe de Sousa Fidalgo, passa a deter o jornal, dá-lhe uma nova vida e acompanha-o, até que morre prematuramente, em 2011. Seguiram-se mais tempos difíceis e conturbados.
Mas isso é outra história...
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*quem escreve estas linhas trabalhou cerca de 15 anos no jornal O Setubalense, onde aprendeu muito do que sabe sobre jornalismo e pesquisa, mas também sobre a vida.………….
Fontes
Arquivo Distrital de Setúbal
https://digitarq.adstb.arquivos.pt/
Arquivo Pessoal de Almeida Carvalho
PT/ADSTB/PSS/APAC
PT/ADSTB/PSS/APAC/L/0045/m0003 a 0110
http://www.osetubalense.pt/historia/
https://www.jn.pt/arquivo/2005/interior/o-setubalense-faz-hoje-150-anos-de-vida--501734.html
Texto de Paulo Morais (também ele jornalista de O Setubalense e prematuramente desaparecido)
https://www.diariodaregiao.pt/2019/03/08/almeida-carvalho-e-o-jornal-o-setubalense/
Atas do encontro de homenagem a Almeida carvalho, in Musa 5 – Museus Arqueologia & outros patrimónios, coordenação de Joaquina Soares, texto de Albérico Afonso Costa e Carlos Mouro; Associação de Municípios da Região de Setúbal – 2018. Disponível em:
maeds.amrs.pt/informacao/MUSA/.../13%20Alberico%20e%20CMouro_Atentado.pdf
https://mfm-a-roda.blogspot.com/2011/06/joao-carlos-p-de-sousa-fidalgo.html