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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Todos os sons do mundo na mesma caixa

orquestrão numa sala.png

 

Parecia magia! Quem fechasse os olhos facilmente pensaria estar perante dezenas de músicos, freneticamente tocando os seus instrumentos luzidios. Afinal, toda música vinha do móvel da sala e cada lar abastado podia agora ter a sua própria orquestra privativa, movida a vapor, por eletricidade, água, gás ou petróleo. Um feito notável!

 

aparelho mostrado na empreza liquidadora.png

De 100 a 1000 instrumentos musicais ao seu dispor, na sua casa. Uma verdadeira orquestra automática e portátil – com alguma boa-vontade e força - ao alcance de qualquer um com bolsos suficientemente recheados e casas razoavelmente desafogadas para acolher tal prodígio. Era esta maravilha da técnica, na época com uma aura de magia, que prometia a máquina musical inventada pelo alemão Michael Welte, nos confins da Floresta Negra, e que Lisboa pôde ouvir pela primeira vez em novembro de 1895, já com muitos aperfeiçoamentos e melhorias (nesta imagem).

Era na Empreza-Liquidadora, em plena avenida da Liberdade, números 28-48, que se daria a primeira exibição, destinada apenas a um reduzido e privilegiado grupo de convidados do sr. José dos Santos Libório (ver À Margem), proprietário e gerente da firma.

O aparelho, produzido pela Haberer, segundo patente da M. Welte & Sons, fazia furor por toda a Europa.

Para além da estética apurada do móvel, os sons que emitia provocavam um efeito verdadeiramente surpreendente nos afortunados que os escutavam, tendo-se “a impressão de estar ouvindo uma orquestra humana, tal a qualidade da “execução e correção nítida das vozes”, independentemente do modelo, já que os Welte patentearam um elevado número, adaptados a diferentes espaços e graus de exigência.

orquestrão welte.png

Em comum tinham a reprodução de trechos musicais com a presença de múltiplos instrumentos, bem como composições cantadas. O “milagre” era feito “por meio de contrapesos”, num movimento que podia ser obtido “a vapor, por eletricidade, água, gás ou petróleo”. Muito versátil, como se pode perceber.

Daí, talvez, o enorme sucesso destas máquinas, com diversos galardões de ouro em feiras internacionais e merecendo a escolha de gente famosa.

Ao que se afirma na imprensa da época, Adelina Patti, a maior estrela lírica daquele tempo, tinha um dos modelos mais complexos, mas não estava só nas suas preferências.  Entre outros, também o Imperador da Rússia; o rei da Roménia; o sultão da Turquia; o Duque de Baden, Khediva, do Egipto; os príncipes da Bulgária; Rajás e Marajás; o barão de Rothschild; marqueses e, finalmente, empresários de salões de concerto e companhias de navegação tinham orquestras automáticas produzidas pela Haberer.

o fonografo de thomas edison.png

A ideia era agora cativar o público português pois, a seguir à primeira e exclusiva demonstração, previam-se outras, de entrada livre, a que poderiam assistir todos os interessados em ver e adquirir estes verdadeiros assombros de modernidade.

As orquestras automáticas* fazem parte de um conjunto de aparelhos de música mecânica que começaram a banalizar-se em finais do século XIX, entre os quais se destaca o fonógrafo, inventado por Thomas Edison, em 1877 e que se estreou perante os lisboetas dois anos depois, no Teatro da Trindade.

Estando resolvido o problema da gravação dos sons, o céu era o limite.

Michael Welte já tinha criado a sua primeira orquestra numa caixa entre 1845 e 1848. Era capaz de imitar mais de mil sons diferentes, através de rolos dentados, e tinha sido encomendada por um cliente de Odessa. Chamaram-lhe “Orchestrion” e, em 1865, o filho, Emil, já tinha um salão de demonstrações em Nova Yorque.

fonografo.png

A empresa, que sobreviveu um século (entre 1832 e 1932), criou dezenas de modelos – para além de órgãos, pianos e relógios, para uso doméstico, teatral e religioso - tendo-se notabilizado pelo refinamento do som e pela invenção e introdução de inovações, como originais sistemas de vácuo e rolos de papel, passíveis de serem produzidos de forma mais rápida e económica.

Sempre a inovar, já nesse derradeiro ano e com outro proprietário – Karl Bocksch - a M. Welte & Sons ainda foi capaz de criar um órgão eletrónico equipado com foto células, o primeiro a usar som por camadas. Não vingou, porque o inventor, Edwin Welte, era casado com uma judia, Betty Dreyfuss, e viu-se obrigado a parar o projeto. De resto, a fábrica alemã seria bombardeada e destruída durante a II Grande Guerra.

Fica aqui um registo do modelo Brisgovia dos Welte

Welte "Brisgovia" Style D Orchestrion (youtube.com)

 

À margem

liborio.png

O português José dos Santos Libório, o patrão da Empreza-Liquidadora, viria a ser, anos mais tarde, um dos principais negociantes de arte e antiguidades, tanto em Portugal, como no Rio de Janeiro, onde se instalou a partir de 1910.

Estendeu os seus negócios a um cinematógrafo, um balcão de venda de bilhetes para espetáculos, um teatro infantil e até um casino - o Grande Casino de Paris - em Lisboa, que ocupou o lugar da Empreza-Liquidadora, quando esta encerrou, em 1906.

Antes, tinha começado por ser um importante organizador de leilões, sendo a sua empresa pioneira desta atividade no nosso País. Foi responsável pela venda de importantes lotes de peças de arte dos artistas mais valorizados e possuía uma clientela que incluía a Casa Real Portuguesa, a mais alta aristocracia e a elite cultural nacional.

Vendia de tudo um pouco, sobretudo artigos de luxo - decoração, pratas, mobiliário e joias - que vinham de diversos países europeus, que Libório visitava, assegurando fornecimentos e até formação específica na área de leilões.

Já no Brasil, teria um papel fundamental na divulgação de artistas portugueses, comercializando inúmeros exemplares de pintura, escultura, cerâmica e marcenaria nacionais, de diversas épocas e estilos, promovendo aparatosas exposições e leilões.

Tão conhecido era este empresário, que não escapou à pena de Rafael Bordalo Pinheiro, que aqui o retratou, legendando que Libório, o grande liquidador, só não conseguia liquidar as responsabilidades da questão do Nyassa, aludindo a um escândalo que deu brado pelo ano de 1895.

Mas isso é outra história...

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*Uma enorme coleção, que espelha precisamente a diversidade de aparelhos que então surgiram, pode ser conhecida no Museu de Música Mecânica, na zona do Pinhal Novo, Palmela.

Home - Museu da Música Mecânica (museudamusicamecanica.com)

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

Diário Illustrado, 08.11. 1885

O António Maria, 23.11.1895

O Occidente, 15.04.1878

 

Hemeroteca Digital Brasileira - Memória Brasil

O Tico-Tico, 06.1913

 

Vera Mariz, José dos Santos Libório (1850-1923), um notável elo de ligação entre os mercados de arte português e brasileiro, in MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 2, n.2, p.271-291, 05.2018. Disponível aqui: https://www.academia.edu/36732899/Jos%C3%A9_dos_Santos_Lib%C3%B3rio_1850_1923_um_not%C3%A1vel_elo_de_liga%C3%A7%C3%A3o_entre_os_mercados_de_arte_portugu%C3%AAs_e_brasileiro

 

https://www.mechanicalmusicpress.com/history/welte/wt_index.htm

https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Michael_Welte

https://www.musikautomaten.ch/mma/it/home/britannic-orgel/storia-della-ditta-welte/orchestrion.html

https://restosdecoleccao.blogspot.com/2018/08/phonographo-e-gramophone-em-portugal.html

https://en.wikipedia.org/wiki/Orchestrion

Regional Historical Museum in Gabrovo keeps the only orchestrion in Bulgaria - Culture (bnr.bg)

Patents for the Welte-Orchestrion - Welte-Mignon

 

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