Um prédio de conspiradores
Intrigas, complots, tramas, explosões, lutas e mortes. O arranque da 1ª República foi fértil em ocorrências e casos que pareciam estar todos ligados entre si… como a colossal explosão que destruiu um edifício na Costa do Castelo, em Lisboa.
7 de julho de 1912. Perto da hora do almoço, um enorme estrondo sacode a cidade, já de si assustadiça com o desenrolar dos acontecimentos nestes primeiros tempos da República. No mesmo dia em que, no Norte de Portugal, Paiva Couceiro empreende uma incursão para tentar recuperar o País para as forças realistas, na lisboeta Costa do Castelo, toda a cobertura e os andares superiores do 42 A converteram-se em escombros e estilhaços difíceis de identificar, como se tivessem sido “metralhados demoradamente”, relatava o jornal A Capital. Um cadáver mutilado jazia entre os destroços projetados para as ruas próximas. Rapidamente se percebe que, num tempo em que se descobrem conspirações monárquicas quase diariamente, um tão grande aparato tinha muito a esconder.
Para começar, António da Silva Cunha - o morto - guardava em casa um autêntico arsenal de armas, mas também de pólvora e dinamite – que terá originado a explosão –, material de laboratório e produtos químicos, com os quais improvisaria bombas. Acrescente-se que o seu nome era bem conhecido das autoridades - não por ser farmacêutico e trabalhar para o cônsul de Cuba, o que servia de disfarce às suas outras atividades - mas porque tinha sido preso no ano anterior, acusado de fazer parte do chamado “complot do Algarve”.
Era, nas palavras da imprensa, um “ferrenho monárquico e conhecido conspirador” que, curiosamente, dois meses antes, tinha sido ilibado de todas as acusações, tal como o foram os seus “companheiros” de conjura, o tenente Cabedo, Alberto Soares e Thomaz Maria da Câmara, filho do escritor D. João da Câmara.
Acontece que, no sitio onde vivia, não estaria sozinho nas suas preferências políticas. No dia do rebentamento que ele próprio causou e o vitimou, foram presos mais três habitantes do edifício.
Se a detenção do velho Thadeu – pai do conhecido bandarilheiro com o mesmo nome – poderia ser considerada estapafúrdia, já a de Palmira Cunha, mulher do bombista, fazia todo o sentido. Mas, e o que dizer da prisão do vizinho do rés-do-chão?
Relata a imprensa que, no piso térreo, vivia José Abranches da Silva, 2º tenente da marinha que havia muito tempo se encontrava de cama, impossibilitado de se mexer devido a um problema de reumatismo. Conta a mesma fonte que, no dia do estoiro, se levantou, alegadamente sem saber como, fardou-se; com um empurrão e força de ombros arrombou a porta do quarto e percorreu os corredores e escadas em busca de esclarecimento sobre o que tinha ocorrido.
Milagre!!! Clamaram os crentes….Alto lá! Gritou a guarda, que o prendeu. Como militar que era, foi detido a bordo da canhoeira Zambeze, em pleno Tejo: outro perigoso e ferrenho monárquico, apressaram-se a dizer os jornais.
Não era para menos, porque, justa ou injustamente, o nome deste 2º tenente maquinista surgiria repetidamente associado à contra-revolução monárquica pelo menos até 1918 e estaria preso várias vezes nesse período, apesar de, em cartas que chegaram aos nossos dias, reclamar o apoio aos republicanos ao denunciar diversas movimentações dos seus outrora companheiros, assim traídos.
Os dias seguintes seriam férteis em desenvolvimentos, alguns trágicos para a causa realista.
Desde logo, a vitória das forças republicanas, que empurraram Paiva Couceiro novamente para Espanha com muitas e importantes baixas pelo caminho. Na mesma altura, são descobertos mais dois complots, em Évora e Belas. Segundo a imprensa, os “paivantes”* detidos em Belas tinham como objetivo tomar Lisboa de assalto, atacando os fortes de Sacavém, Monsanto e Caxias.
Trágica foi, logo a 9 de julho, a morte do também 2º tenente Alberto Soares, antigo companheiro de prisão do perito em bombas António da Silva Cunha, e “elemento reacionário perigoso”, nas palavras dos jornais. Por pouco não foi linchado por populares em pleno Rossio. Refugiou-se num hotel próximo, mas acabaria por morrer com um tiro disparado de entre a multidão, que ululava de excitação à vista do sangue derramado.
Nos dias de hoje, a sua morte é entendida como um assassinato por razões políticas. O primeiro dos muitos que povoaram a conturbada 1ª República em Portugal.
À margem
Henrique Paiva Couceiro é visto como o último defensor da monarquia, no sentido em que conseguiu organizar tropas e tentou, por diversas vezes, repor o anterior modelo político no País, quer pelas armas, quer fazendo uso de negociações. Inabalável nos seus princípios, Paiva Couceiro tinha antes uma longa história pessoal de serviço prestado ao País, como militar e político, estando muito próximo da imagem de herói nacional.
Após o 5 de outubro de 1910, passou a ser apelidado de traidor e fez várias incursões militares com o intuito de derrubar os republicanos, chegando a decretar a “monarquia do Norte”, que durou apenas 25 dias, já em 1919. Consta que, nesses tempos, nas festas populares, era comum ouvir-se a ladainha:
“Portuguezes vesti lucto,
Um lucto bem denegrido;
Se Paiva Couceiro não vem,
Portugal está perdido”
E logo outra voz respondia:
“Paiva Couceiro,
Mais uma vez;
Mostra o que vale,
O sangue português**
Mas isso é outra história...
…..
*Paivante aqui entendido como partidário de Paiva Couceiro.
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Jornal A Capital
Nº697, 3º ano – 7 jul. 1912
Nº698, 3º ano – 8 jul. 1912
Nº699, 3º ano – 9 jul. 1912
Nº700, 3º ano – 10 jul. 1912
Nº701, 3º ano – 11 jul. 1912
Nº702, 3º ano – 12 jul. 1912
Nº703, 3º ano – 13 jul. 1912
Nº704, 3º ano – 14 jul. 1912
Nº705, 3º ano – 15 jul. 1912
Nº706, 3º ano – 16 jul. 1912
Nº707, 3º ano – 17 jul. 1912
Illustração Portuguesa
Nº334 – 15 jul. 1912
O Occidente
35º ano, XXXV volume, nº 1207 – 10 jul. 1912
35º ano, XXXV volume, nº 1208 – 20 jul. 1912
Armando Ribeiro, A revolução portuguesa
https://archive.org/stream/revoluoportu04ribe/revoluoportu04ribe_djvu.txt
Miguel Dias Santos, A contra-revolução na I República 1910-1919, Imprensa da Universidade de Coimbra
http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_10988/o_Pasta/t_Correspondencia
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001690
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001691
*In - Couceiro o Capitão Phantasma, Joaquim Leitão, Edição do Autor, Porto 1914, p. 106, citado em https://pt.wikipedia.org/wiki/Henrique_Mitchell_de_Paiva_Couceiro