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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Uma Rosa cheia de espinhos

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Maria Rosa foi uma vedeta entre os gatunos do século XIX. Uma verdadeira estrela que, apesar dos incontáveis golpes e das numerosas detenções, conseguiu granjear a simpatia do público – pelo menos aquele que não foi alvo dos seus esquemas – e manteve aquele ar de menina simples da província, que não faz mal a uma mosca. Pura ilusão.

O espaço que é dedicado a Maria Rosa na Galeria de Criminosos Célebres* - onze páginas, logo na segunda posição, atrás do Físico-Mor – é bem espelho da sua notoriedade. As suas façanhas foram amplamente noticiadas,  seu casamento, na prisão, celebrou-se nos jornais, como se de uma artista conhecida se tratasse, deu entrevistas e a sua morte foi anunciada várias vezes…por engano. Para a história ficaria conhecida como Giraldinha.

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A vida de Maria Rosa, foi, aliás, uma série de equívocos e embustes, um conjunto de situações em que o que parece, afinal, não é, porque quando se mente muito, fica difícil perceber onde termina a verdade e começa a invenção.

Mas, fez jus à alcunha, porque, apesar de se sentir em casa na Mouraria, passava os dias a circular por Lisboa, mudando de poiso à medida que era reconhecida numa determinada vizinhança, dormindo em diferentes locais e nunca aquecendo o lugar por muito tempo. Quando obtinha algum dinheiro, saía da cidade para o gastar longe das vistas de quem a conhecia.

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Era uma mestre do improviso e, em cada situação, procurava sempre uma saída para obter vantagem sobre as “vítimas” ou a própria polícia. Ladina, rápida de raciocínio e de trato cativante, ainda assim, entre 1883 e 1894, foi detida mais de 20 vezes – a primeira da quais com 17 anos - e passou cerca de 2.500 dias atrás das grades.

Embora, como diria um jornalista, fosse uma criatura “predestinada para a carreira do crime”, não se lhe conhecem delitos de sangue e também se destacou por, ao contrário da maioria das mulheres da sua condição, recusar dedicar-se à prostituição.

Palmar o alheio era muito mais aliciante!

E, era isso que fazia no seu dia-a-dia. Era assim que fazia pela vida.

Tanto desviava uma peça de fazenda que estivesse à porta de uma loja, como uma carteira ou uma joia cujo proprietário estivesse distraído. Tanto se fazia passar por uma futura vizinha, para entrar em casa da "presa", como fingia que estava a ser perseguida por um marido violento, para franquear outra porta mais hesitante.  Depois, era entabular conversa, ganhar a confiança e encontrar maneira de, naquele momento ou nos dias seguintes, levar consigo alguns pertences valiosos de que o enganado nem percebia logo que tinha ficado privado.

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Quem a ouvia, ficava preso às suas palavras. Tanto, que chegou a enganar a sabida Chica-russa, uma bruxa com vasta freguesia e “escritório” para os lados da Ajuda.

Aliciou-a com a possibilidade de arranjar abastada clientela e acabou por lhe ficar com uma valiosa pulseira que a outra tinha deixado a arranjar e a esperta Maria Rosa “levantou”, fazendo-se passar por mana da pouco perspicaz curandeira.

Negava sempre, arranjava desculpas e nunca admitia ser culpada. Tinha muita presença de espírito e isso era valorizado pela polícia, mesmo quando eram os próprios agentes a ser trapaceados…como daquela vez em que a Giraldinha se fez passar por familiar próxima de um polícia de alta patente; ou da outra, em que mentiu saber o paradeiro do Pardal, um homicida que todos queriam apanhar, mas que serviu, sim, como pretexto para deixar a polícia de mãos a abandar e conseguir escapulir-se mesmo antes de ser levada para o Aljube.

A cena foi de tal modo hilariante que acabaria transformada em quadro de revista, ampliando a notoriedade da simpática gatuna, em Portugal e no Brasil, onde a peça Tim tim por tim tim (1888), de António de Sousa Bastos, também seria um sucesso.

Das muitas vezes que saía da cadeia, despedia-se sempre da mesma forma: “Adeus gentes. Até muito breve. Cá virei matar saudades!” Sabia bem que, vivendo no fio da navalha, dificilmente escaparia longamente a novas férias forçadas.

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Seria no Limoeiro que juntaria os trapinhos com o Bailhão, pouco antes regressado de uma estadia em África, tão forçada como as da noiva. A ansiada lua-de-mel só seria gozada tempos depois, finda a pena que a fez regressar ao Aljube logo após a cerimónia (na imagem).

Como tantos em busca de uma vida melhor, terá trocado a Guarda por um futuro incerto na Capital. Se o fez para servir em alguma casa lisboeta, como então era comum, ou para ir ao encontro de um rapaz cujo amor a família contrariava, como disse numa entrevista, isso já é mais difícil de saber, tantas são as contradições entre a lábia de Maria Rosa e a sua realidade.

Viveria “senhora séria e casada, degredada na Costa de África”, por volta de 1902, mas ao chegar aos 40 anos, já de regresso à metrópole e às suas andanças conhecidas, a tísica, que havia muito, insidiosamente, a minava, poria um ponto final nas aventuras da Giraldinha.

 

À margem

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Em 1908, quase no fim da sua curta vida, foi um lenço que, por pouco, não levou à condenação da Giraldinha por um assassinato que não cometera e que provocou forte comoção em Lisboa - na imagem, a multidão presente no funeral.

Naquela abrasadora manhã de verão, a cidade acordou para o horror da descoberta, na azinhaga de Santa Luzia (entre o Areeiro e o Campo Grande), do corpo sem vida da jovem varina Maria dos Anjos. Tinha apenas 13 anos de idade e fora estrangulada com um velho lenço de seda, para lhe levarem algum dinheiro do giro de venda de peixe, uns brincos e um cordão de ouro que trazia ao pescoço.

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A polícia prendeu a Giraldinha e uma sua antiga parceira de cela, a Josefa Colares (na imagem, com um agente da autoridade), pois o lenço foi identificado como pertencendo a uma das duas. Foram outras companheiras do Aljube que ajudaram a esclarecer que pertencia, afinal, à Josefa, pois a Giraldinha só o tinha usado emprestado, uma vez que sofrera de dores de dentes.

Foi também um lenço a libertar momentaneamente outro criminoso que, por aqueles tempos, se destacou com a suas façanhas, que hoje nos parecem quase ingénuas. Em 1902, durante semanas, o Bicho concentrou em si as atenções, não pelos pequenos furtos que desenvolveu, mas por ter conseguido fugir da torre de S. Julião da Barra, aproveitando o descuido dos guardas, e, depois, dos calabouços do Tribunal de Instrução, na Calçada da Estrela, fazendo-se passar pelo companheiro de cela. É que este, por ter “partido a cabeça”, trazia um lenço atado em volta do crânio, o que serviu de disfarce ao Bicho, que o substituiu na apresentação do juiz, saindo em liberdade. Não por muito tempo.

Mas isso é outra história…

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*A Galeria de Criminosos Célebres que me refiro foi uma publicação quinzenal depois editada em livro em sete volumes, entre 1896 e 1902, dirigida por Eduardo Fernandes e J. Santos Júnior, onde são passadas em revista as vidas e “proezas” dos maiores criminosos portugueses dos finais do século XIX, sob o ponto de vista jornalístico e científico.

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Fontes

Artur Varatojo, Arquivos do Crime – Casos Reais, A Giraldinha e os vigaristas do passado, Edição especial para o Correio da Manhã, 2003.

Leonor Sá, Infâmia e Fama – O mistério dos primeiros retratos judiciários em Portugal (1869-1895),Lisboa, Edições 70, maio 2018.

Jornal Expresso, 14.09.2015, texto de Anabela Natário.

Hemeroteca Municipal de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Illustração Portuguesa, 18.08.1908.

Illustração Portuguesa, 31.08.1908.

 

Hemeroteca Digital Brasileira

Coleção Digital de Jornais e Revistas da Biblioteca Nacional (bn.br)

Jornal do Recife, 12.02.1899.

Gazeta de Notícias, 31.03.1902, texto de João da Câmara.

O Fluminense, 21.02.1903.

 

Imagens

Leonor Sá, Infâmia e Fama – O mistério dos primeiros retratos judiciários em Portugal (1869-1895),Lisboa, Edições 70, maio 2018.

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Illustração Portuguesa, 18.08.1908.

Illustração Portuguesa, 31.08.1908.

Arquivo Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000308

Machado & Souza

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/003618

 

 

 

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