Viajar num hotel de luxo sobre carris
Em finais do século XIX, as viagens, mesmo entre países europeus, eram demoradas e incómodas. Imagine-se o frenesim entre as gentes mais abastadas e mundanas do reino quando Lisboa ficou ligada a Paris em apenas 46 horas, ainda por cima, com o trajeto a fazer-se num faustoso hotel sobre carris. O Sud-Express passou a unir-nos à “capital do gosto” e o seu sucesso durou mais de 130 anos.
O Sud-Express era um transporte declaradamente pensado para as classes altas, porque só estas tinham dinheiro e disponibilidade para viajar por prazer ou negócios. Só a elite podia dar-se ao luxo de deslocar-se a Paris para conhecer as últimas modas, passear nos boulevards ou assistir à estreia de uma ópera.
Os primeiros a experimentar o trajeto, no entanto, foram os estrangeiros convidados da Compagnie Internationale des Wagons-Lits Et des Grands Express Européens, representantes da empresa, dos países envolvidos e outras pessoas “de elevadas posições sociais”, aos quais se juntaram, já na fronteira com Espanha, os mais altos responsáveis da Companhia Real de Caminhos de Ferro Portugueses.
A composição deu entrada na gare de Santa Apolónia às 15h30 do dia 23 de outubro de 1887. Foi uma aparição triunfal, sob a atenção de um vasto grupo de individualidades e mirones bem informados.
Nas imediações da estação, as janelas adornaram-se com coloridas colchas de damasco, enaltecendo a ocasião.
Escusado será dizer que os visitantes não se ficaram por Alfama. Alojados nos melhores hotéis da cidade, tiveram o privilégio de fazer a tour então “obrigatória” para todos os forasteiros com algum gosto: Cascais e Sintra, com múltiplos banquetes.
Até que, finalmente, partiram para as suas terras, esperando-os mais festas pelo caminho e à chegada. Tal foi o folguedo, que esta ilustre expedição a terras lusas custou à Wagon Lits muito perto de dois contos de reis.
Nada como causar boa impressão!
De facto, o Sud-Express teve, por cá, um impacto positivo desde o primeiro momento. A viagem inaugural a partir de Lisboa teria lugar só a 9 de novembro, o que nos colocou “a par das grandes vias europeias”.
Pelas 20h15 desse dia, partia a primeira ligação oficial com passagem por Madrid, Bordéus, Paris e destino em Calais, permitindo, desta forma, a ligação a Londres em 54 horas.
Para além da locomotiva e do wagon com as bagagens, o comboio era composto por “deliciosos” sleeping cars, já conhecidos dos portugueses no trajeto entre Lisboa e o Porto, e onde a magia acontecia perante os nossos olhos.
No interior dos recatados compartimentos, o que de dia era um sofá, de noite, transformava-se “como por encanto”, em duas confortáveis camas sobrepostas, com os devidos lençóis e almofadas, protegidas por densos cortinados, que proporcionam um “aspeto de conforto e riqueza admiráveis”.
Com capacidade para 18 a 20 pessoas, possuíam um espampanante espaço de toilette em cada extremo, um para cavalheiros e outro para damas, com abundância de águas quentes e frias, para além do indispensável water closet, que é como quem diz, a retrete.
Tudo aquecido e com luz elétrica, pavimento fofamente atapetado e com lugar para um criado que fazia o serviço aos passageiros e podia ser chamado através de discreta campainha.
No wagon restaurante havia duas salas, cadeiras com estofos em couro artisticamente lavrado, espelhos de Veneza e profusa iluminação. Ali, era servido um “menu simples, mas delicado”, embora não agradando a todos os gostos, devido ao “paladar mais ou menos estragado" dos cozinheiros ambulantes.
A ideia era que todas as necessidades dos viajantes fossem atendidas em andamento, podendo, em teoria, entrar-se em Lisboa e não sair senão em Paris, cidade que congregava as maiores curiosidades, simbolizando o cúmulo da sofisticação, do chique e da modernidade.
Seria, provavelmente, o destino preferencial dos portugueses que utilizaram o Sud-Express.
O serviço já estava pensado havia alguns anos, mas uma epidemia de cólera que então grassava na Europa, atrasou o seu funcionamento. As viagens, que começaram por ser às 20h15 de quarta-feira, passaram, sucessivamente, a bi e trissemanais. Em 1907, eram já diárias.
Finalmente, era possível fazer turismo pela Europa com algum conforto e rapidez. Os outros europeus podiam, com mais facilidade, conhecer esse pequeno país cheio de sol chamado Portugal, nem que fosse só para apanhar o barco para as "Américas".
Com o tempo, este transporte de luxo vulgarizou-se e desceu na escala social.
Tornou-se a opção preferencial que os emigrantes portugueses podiam pagar nas suas deslocações “à terra” e de tantos outros, que a necessidade fazia viajar. Tanto que, nos anos 60 e 70, as numerosas ligações existentes continuavam a ser insuficientes para a procura.
O Sud-Express deixou de circular apenas durante períodos da Guerra Civil de Espanha e da II Grande Guerra. Curiosamente, foi outra epidemia que o “matou” - para além da expansão rodoviária e das viagens baratas de avião, claro: suspenso devido ao Covid 19, não foi reatado até hoje.
À margem
A família real não estava em Lisboa para receber os ilustres estrangeiros que vinham na viagem estreia do Sud-Express. Encontrava-se no norte do país, num périplo durante o qual, nomeadamente, inauguraram a estátua de homenagem a D. Afonso Henriques, em Guimarães. Esta viagem e as numerosas obras que então decorriam no âmbito da expansão do caminho-de-ferro, dominavam as notícias dos jornais.
O primeiro troço de linha, entre Lisboa e o Carregado, tinha entrado ao serviço em 1856. Desde aí, as novidades não mais pararam.
Naqueles dias de 1887, falava-se da necessidade que houve de usar duas locomotivas para puxar um comboio extraordinariamente pesado que partira de Coimbra. Dava-se a novidade das almofadas que, por módica quantia, se podia utilizar nas viagens em Portugal. Esmiuçavam-se as obras de sondagem, terraplanagem e perfuração para a construção daquela que seria a linha urbana da cidade de Lisboa e o túnel do Rossio, onde trabalhavam diariamente 1.800 pessoas, maioritariamente, mineiros.
Os jornais também já aludiam a uma dificuldade que hoje, quase 140 anos depois destes acontecimentos, ainda não foi ultrapassada, a diferença na largura dos carris entre a Península Ibérica e o resto da Europa, que obriga[va] à incómoda mudança de comboio na fronteira com França.
Mas isso é outra história….
Fontes
Biblioteca Nacional de Portugal
Diário Illustrado
24.10.1887; 25.10.1887; 26.10.1887; 01.11.1887; 04.11.1887; 09.11.1887;
10.11.1887.
Hemeroteca Digital de Lisboa
O Occidente, texto d L. de Mendonça e Costa
11.12.1887
Pontos nos II
31.10.1887
Trains Spotter, texto de Manuel Luís Gonçalves
09.2015
Cronologia | CP - Comboios de Portugal
Presente & Passado: Uma passagem pelo "Sud – Express" (presenteepassado.blogspot.com)
https://portugalferroviario.net/wordpress/wp-content/uploads/2015/11/2015-09.pdf
Estação Ferroviária do Rossio - Wikiwand
Imagens
O Occidente
11.12.1887