Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Viajar num hotel de luxo sobre carris

sud express 1887.png

Em finais do século XIX, as viagens, mesmo entre países europeus, eram demoradas e incómodas. Imagine-se o frenesim entre as gentes mais abastadas e mundanas do reino quando Lisboa ficou ligada a Paris em apenas 46 horas, ainda por cima, com o trajeto a fazer-se num faustoso hotel sobre carris. O Sud-Express passou a unir-nos à “capital do gosto” e o seu sucesso durou mais de 130 anos.

 

sud express 1896.png

O Sud-Express era um transporte declaradamente pensado para as classes altas, porque só estas tinham dinheiro e disponibilidade para viajar por prazer ou negócios. Só a elite podia dar-se ao luxo de deslocar-se a Paris para conhecer as últimas modas, passear nos boulevards ou assistir à estreia de uma ópera.

Os primeiros a experimentar o trajeto, no entanto, foram os estrangeiros convidados da Compagnie Internationale des Wagons-Lits Et des Grands Express Européens, representantes da empresa, dos países envolvidos e outras pessoas “de elevadas posições sociais”, aos quais se juntaram, já na fronteira com Espanha, os mais altos responsáveis da Companhia Real de Caminhos de Ferro Portugueses.

as festas do sud express 1.png

A composição deu entrada na gare de Santa Apolónia às 15h30 do dia 23 de outubro de 1887. Foi uma aparição triunfal, sob a atenção de um vasto grupo de individualidades e mirones bem informados.

Nas imediações da estação, as janelas adornaram-se com coloridas colchas de damasco, enaltecendo a ocasião.

Escusado será dizer que os visitantes não se ficaram por Alfama. Alojados nos melhores hotéis da cidade, tiveram o privilégio de fazer a tour então “obrigatória” para todos os forasteiros com algum gosto: Cascais e Sintra, com múltiplos banquetes.

Até que, finalmente, partiram para as suas terras, esperando-os mais festas pelo caminho e à chegada. Tal foi o folguedo, que esta ilustre expedição a terras lusas custou à Wagon Lits muito perto de dois contos de reis.

Nada como causar boa impressão!

unnamed.jpg

De facto, o Sud-Express teve, por cá, um impacto positivo desde o primeiro momento. A viagem inaugural a partir de Lisboa teria lugar só a 9 de novembro, o que nos colocou “a par das grandes vias europeias”.

Pelas 20h15 desse dia, partia a primeira ligação oficial com passagem por Madrid, Bordéus, Paris e destino em Calais, permitindo, desta forma, a ligação a Londres em 54 horas.

Para além da locomotiva e do wagon com as bagagens, o comboio era composto por “deliciosos” sleeping cars, já conhecidos dos portugueses no trajeto entre Lisboa e o Porto, e onde a magia acontecia perante os nossos olhos.

No interior dos recatados compartimentos, o que de dia era um sofá, de noite, transformava-se “como por encanto”, em duas confortáveis camas sobrepostas, com os devidos lençóis e almofadas, protegidas por densos cortinados, que proporcionam um “aspeto de conforto e riqueza admiráveis”.

compartimento de dia e de noite.png

Com capacidade para 18 a 20 pessoas, possuíam um espampanante espaço de toilette em cada extremo, um para cavalheiros e outro para damas, com abundância de águas quentes e frias, para além do indispensável water closet, que é como quem diz, a retrete.

corredor e gabinete.png

Tudo aquecido e com luz elétrica, pavimento fofamente atapetado e com lugar para um criado que fazia o serviço aos passageiros e podia ser chamado através de discreta campainha.

wagon restaurante.png

No wagon restaurante havia duas salas, cadeiras com estofos em couro artisticamente lavrado, espelhos de Veneza e profusa iluminação. Ali, era servido um “menu simples, mas delicado”, embora não agradando a todos os gostos, devido ao “paladar mais ou menos estragado" dos cozinheiros ambulantes.

sleeping car.png

A ideia era que todas as necessidades dos viajantes fossem atendidas em andamento, podendo, em teoria, entrar-se em Lisboa e não sair senão em Paris, cidade que congregava as maiores curiosidades, simbolizando o cúmulo da sofisticação, do chique e da modernidade.

 

Seria, provavelmente, o destino preferencial dos portugueses que utilizaram o Sud-Express.

O serviço já estava pensado havia alguns anos, mas uma epidemia de cólera que então grassava na Europa, atrasou o seu funcionamento. As viagens, que começaram por ser às 20h15 de quarta-feira, passaram, sucessivamente, a bi e trissemanais. Em 1907, eram já diárias.

Finalmente, era possível fazer turismo pela Europa com algum conforto e rapidez. Os outros europeus podiam, com mais facilidade, conhecer esse pequeno país cheio de sol chamado Portugal, nem que fosse só para apanhar o barco para as "Américas".

Com o tempo, este transporte de luxo vulgarizou-se e desceu na escala social.

Tornou-se a opção preferencial que os emigrantes portugueses podiam pagar nas suas deslocações “à terra” e de tantos outros, que a necessidade fazia viajar. Tanto que, nos anos 60 e 70, as numerosas ligações existentes continuavam a ser insuficientes para a procura.

O Sud-Express deixou de circular apenas durante períodos da Guerra Civil de Espanha e da II Grande Guerra. Curiosamente, foi outra epidemia que o “matou” - para além da expansão rodoviária e das viagens baratas de avião, claro: suspenso devido ao Covid 19, não foi reatado até hoje.

 

À margem

A família real não estava em Lisboa para receber os ilustres estrangeiros que vinham na viagem estreia do Sud-Express. Encontrava-se no norte do país, num périplo durante o qual, nomeadamente, inauguraram a estátua de homenagem a D. Afonso Henriques, em Guimarães. Esta viagem e as numerosas obras que então decorriam no âmbito da expansão do caminho-de-ferro, dominavam as notícias dos jornais.

O primeiro troço de linha, entre Lisboa e o Carregado, tinha entrado ao serviço em 1856. Desde aí, as novidades não mais pararam.

Naqueles dias de 1887, falava-se da necessidade que houve de usar duas locomotivas para puxar um comboio extraordinariamente pesado que partira de Coimbra. Dava-se a novidade das almofadas que, por módica quantia, se podia utilizar nas viagens em Portugal. Esmiuçavam-se as obras de sondagem, terraplanagem e perfuração para a construção daquela que seria a linha urbana da cidade de Lisboa e o túnel do Rossio, onde trabalhavam diariamente 1.800 pessoas, maioritariamente, mineiros.

Os jornais também já aludiam a uma dificuldade que hoje, quase 140 anos depois destes acontecimentos, ainda não foi ultrapassada, a diferença na largura dos carris entre a Península Ibérica e o resto da Europa, que obriga[va] à incómoda mudança de comboio na fronteira com França.

Mas isso é outra história….

 

 

Fontes

Biblioteca Nacional de Portugal

Diário Illustrado

24.10.1887; 25.10.1887; 26.10.1887; 01.11.1887; 04.11.1887; 09.11.1887;

10.11.1887.

Hemeroteca Digital de Lisboa

O Occidente, texto d L. de Mendonça e Costa

11.12.1887

Pontos nos II

31.10.1887

 

 

Trains Spotter, texto de Manuel Luís Gonçalves

09.2015

 

Cronologia | CP - Comboios de Portugal

Presente & Passado: Uma passagem pelo "Sud – Express" (presenteepassado.blogspot.com)

 

https://portugalferroviario.net/wordpress/wp-content/uploads/2015/11/2015-09.pdf

 

Estação Ferroviária do Rossio - Wikiwand

 

Imagens

13 Sud express Images: PICRYL - Public Domain Media Search Engine Public Domain Search (getarchive.net)

 

O Occidente

11.12.1887

 

trains-worldexpresses.com

2 comentários

Comentar post